Rolê pelo lado selvagem. Trump encontra Putin na Estação Finlândia, por Pepe Escobar
Pepe Escobar, Asia Times
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
"Todo mundo tinha de pagar e pagava
um michê aqui, um michê ali"Rolê pelo lado selvagem (Lou Reed)
um michê aqui, um michê ali"Rolê pelo lado selvagem (Lou Reed)
"O outro elemento do gênio de Marx é uma intuição psicológica peculiar: ninguém jamais enxergou com olhos tão implacáveis a infinita capacidade humana de não perceber ou de encarar com indiferença a dor que infligimos aos outros, quando temos oportunidade de tirar algum lucro, da dor infligida" (WILSON, Edmund, Rumo à Estação Finlândia. Escritores e Atores da História, trad. Paulo Henrique Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 1972).*
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"A Guerra Fria é coisa do passado". Quando o presidente Putin disse tal coisa, nos comentários preliminares à conferência de imprensa que os dois presidentes, Trump e Putin deram em Helsinki, já era claro que não poderia durar. Não depois de tamanho investimento, dos conservadores norte-americanos, na Guerra Fria 2.0.
Russofobia é indústria que opera 24 horas/dia, 7 dias/semana, e inclui tudo e todos, também a mídia-empresa vassala, que permanece lívida de fúria ante a "amaldiçoada" conferência conjunta Trump-Putin. Trump está em "colusão" com a Rússia. Traidor. Como pode o presidente dos EUA promover a "equivalência moral" com um escroque de fama mundial"?
Trump: "Nosso relacionamento jamais foi pior do que hoje. Mas isso mudou. Agora mesmo, há cerca de quatro horas."
Putin: "Os EUA poderiam ser mais firmes e dar jeito naquela liderança ucraniana".
Trump: "Nunca houve colusão. Ganho de Hillary Clinton, fácil, em qualquer eleição."
Putin: "Devemos nos guiar por fatos. Quem pode apontar um fato, um, que seja, que prove que houve colusão? A coisa toda não passa de sandices."
E aí, o direto na orelha: o presidente da Rússia grita "é blefe" ao [Conselheiro Especial] Robert Mueller. Diz que se oferece para interrogar os russos acusados de interferir em eleições nos EUA, desde que Mueller encaminhe a Moscou um pedido oficial. OK. E, em troca, a Rússia apreciaria que os EUA consultassem o próprio povo, sobre se há algum crime de que Moscou possa ser acusada.
Trump acertou no fundo do gol, quando lhe perguntaram em quem acreditava: na inteligência dos EUA, que concluiu que a Rússia interferira na eleição, ou em Putin, que nega qualquer interferência.
"Se o presidente Putin diz que não foi a Rússia, não vejo razão para supor que tivesse sido."
E como se não bastasse, dobrou a aposta, e falou, ele, sobre o servidor do Comitê Democrata Nacional. "Queria muito ver o tal servidor. Que fim levou? Onde está? Onde está o servidor e o que diz aquele servidor?"
Era inevitável, e aconteceu, que um encontro de cúpula crucialmente importante entre os presidentes da Rússia e dos EUA acabaria sequestrado pela demência do ciclo 'noticioso' nos EUA.
Trump não se abalou. Ele sabe que os discos rígidos do computador do Comitê Democrata Nacional – de onde teriam sido 'hackeados' os tais 'dados' – simplesmente "sumiram" quando estavam sob custódia da inteligência dos EUA, FBI incluído. Ele sabe que seria necessária largura de banda muito maior para transferir arquivos, do que tudo que algum hacker poderia ter, naquele prazo. Foi um vazamento: os dados foram baixados para um flash-drive.
Além do mais, Putin sabe que Mueller sabe que jamais conseguirá arrastar 12 agentes da inteligência russa até um tribunal nos EUA. Assim sendo, a tal acusação – já desqualificada – anunciada apenas três dias antes da reunião de Helsinki, não foi senão uma granada de mão judicial preventiva.
Não surpreende que John Brennan, ex-diretor da CIA no governo de Obama, esteja furioso. "A conferência de imprensa de Donald Trump em Helsinki já supera os limites do que se define como 'crime e transgressão grave’. Estamos diante de traição. Não é só que os comentários de Trump foram imbecis: ele está na gaveta de Putin."
Como se ligam Síria e Ucrânia
Mas há razões para que se possa esperar pelo menos pequenos avanços nos três fronts em Helsinki: uma solução para a tragédia síria; um esforço para limitar as armas nucleares e salvar o Tratado das Forças Nucleares de Alcance Intermediário assinado em 1987 por Reagan e Gorbachev; e um movimento para normalizar as relações EUA-Rússia, afastando a Guerra Fria 2.0.
Trump sabia que nada tinha a oferecer a Putin para negociar alguma coisa na Síria. O Exército Árabe Sírio controla agora virtualmente 90% do território nacional. A Rússia está firmemente plantada no Mediterrâneo Oriental, especialmente depois de assinar acorde de 49 anos com Damasco.
Mesmo considerando menções cautelosas a Israel feitas pelos dois lados, Putin com certeza não aceitou forçar o Irã para fora da Síria.
Não parece que esteja em andamento alguma "grande barganha" que envolva o Irã. O principal conselheiro do Aiatolá Khamenei, Ali Akbar Velayati, esteve em Moscou na semana passada. A entente cordiale Moscou-Teerã parece inabalável. Ao mesmo tempo, como Asia Timesapurou, Bashar al-Assad disse a Moscou que pode até concordar com a saída do Irã, mas em troca de Israel devolver as colunas sírias do Golan ocupadas por Israel. O status quo, portanto, não mudou.
Putin mencionou que os dois presidentes discutiram o acordo nuclear iraniano (ing. Joint Comprehensive Plan Of Action] e que, essencialmente, concordam empenhadamente em discordar. O secretário de Estado Mike Pompeo e o secretário do Tesouro Steven Mnuchin redigiram carta em que formalmente rejeitam um apelo para criar exceções nas sanções, em finanças, energia e atenção à saúde, enviado por Alemanha, França e Grã-Bretanha. Máximo bloqueio econômico continua a ser o nome do jogo. Putin pode ter convencido Trump das possíveis graves consequências de um embargo dos EUA sobre o petróleo iraniano e, mesmo, de um cenário (implausível) de Teerã bloquear o Estreito de Ormuz.
Julgando-se pelo que disseram os dois presidentes e por tudo que vazou até agora, Trump pode não ter oferecido reconhecimento explícito da Crimeia como território russo, nem qualquer alívio das sanções ligadas à Ucrânia.
O que parece razoável é visualizar um balé de palavras, extremamente delicado, em termos do que foi realmente discutido com relação à Ucrânia. Mais uma vez, a única coisa que Trump poderia oferecer no caso da Ucrânia seria algum alívio nas sanções. Mas para a Rússia as apostas são muito mais altas.
É sabido que Putin vê o Sudeste Asiático e a Europa Oriental como completamente integrados. A bacia do Mar Negro é onde se cruzam Ucrânia, Turquia, Europa Oriental e o Cáucaso. Ou, em termos históricos, aí é para onde convergiam os impérios russo, otomano e dos Habsburgo.
Um Mar Negro Expandido implica convergência geopolítica do que está acontecendo na Síria e na Ucrânia. Por isso só um pacote geral interessa ao Kremlin. Não é por acaso que Washington identifica esses dois nodos e trata-os como um – desestabilizar Damasco e virar as mesas em –, para causar problemas para Moscou.
Putin sabe que Síria estável e Ucrânia estável são essenciais para aliviar o peso, para os russos, nos negócios com os Bálcãs e os países do Báltico. Voltamos mais uma vez à encruzilhada geopolítica clássica, o Intermarium ("entre os mares"). É ultra contestado 'cinturão' da Estônia ao norte, até a Bulgária no sul – e até o Cáucaso no leste. Mais uma vez, sempre foi moldura onde se travavam as disputas entre Alemanha e Rússia. Agora é moldura para as disputas entre EUA e Rússia.
Num eco fascinante da reunião de cúpula em Helsinki, estrategistas ocidentais perdem o sono apostando se a Rússia será capaz ou não de "Finlandizar" toda a área periférica.
E isso nos leva, inevitavelmente, ao que se pode chamar de A Questão Alemã. Qual o principal objetivo de Putin: relacionamento comercial bem próximo e estratégico com a Alemanha (o business alemão a favor)? Ou algum tipo de entente cordiale com os EUA? Diplomatas da União Europeia em Bruxelas dizem abertamente que por baixo dos raios e trovoadas, esse é o graal santo entre os santos.
Rolê pelo lado selvagem
O excerto hoje já famoso de uma entrevista de Trump em seu campo de golfe em Turnberry, Escócia, antes de Helsinki, pode oferecer algumas pistas.
"Bem, acho que temos muitos inimigos. Acho que a União Europeia é inimiga, pelo que nos faz no comércio. Ninguém pensaria na União Europeia como inimiga, mas sim, é nossa inimiga. Em alguns aspectos, a Rússia é inimiga. A China é inimiga, economicamente, certamente é inimiga. Mas não significa que sejam más. Não significa coisa alguma. Só significa que são competitivas."
Putin com certeza sabe disso. Mas até Trump, apesar de não ser estrategista Clausewitziano, pode ter tido uma intuição de que a ordem liberal pós-Segunda Guerra Mundial, construída por EUA hegemônicos e dependentes da permanente hegemonia militar dos EUA sobre a massa terrestre eurasiana e uma Europa vassala, está em dissolução.
Com Trump bombardeando esses Estados Unidos da Europa com acusações de que seriam "competidores "injustos" dos EUA, é essencial ter em mente que a ideia dessa reunião de cúpula em Helsinki foi da Casa Branca, não do Kremlin.
Trump trata a União Europeia com indisfarçado desdém. Ele adoraria que a UE se dissolvesse. Seus "parceiros" árabes podem ser facilmente controlados pelo medo. Já declarou guerra econômica à China, literalmente, com o vagalhão de tarifas – apesar de o FMI ter alertado que há o risco de a economia global perder cerca de $500 bilhões nesse processo. E está diante do absolutamente inafastável intratável eixo China-Rússia-Irã de integração da Eurásia, que absolutamente não se dissolverá no ar.
Assim, era absolutamente imprescindível conversar com Putin, "escroque de fama mundial" – na terminologia dos suspeitos de sempre. Um dividir para governar aqui, um acordo ali – quem sabe o que se pode arranjar com um pouco de viração? Parafraseando Lou Reed, a nova Trump City "é onde dizem 'Hey babe, dê um rolê pelo lado selvagem."
Durante a conferência de imprensa em Helsinki, Putin, saindo de uma espetacular Copa do Mundo na Rússia e correspondente espetacular show de Relações Públicas e soft power, deu a Trump uma bola de futebol. O presidente dos EUA disse que daria a bola ao filho, Barron, e passou o presente para a 1ª Dama Melania. Bom. Agora a bola está no campo de Melania.*******
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores, que agradecem a Pepe Escobar pela oportunidade de recordar o maravilhoso livro de Edmund Wilson. Estação Finlândia, é estação ferroviária em São Petersburgo, onde Lênin desembarcou, de volta do exílio suíço, dia 16 de abril de 1917, depois de percorrer roteiro impossível, da Suíça à Rússia. Trotsky, que vivia em Londres, também viajava de volta à Rússia naqueles dias. O czar russo renunciara semanas antes; e dia 2 de abril de 1917, o presidente dos EUA obtivera autorização do Congresso para declarar guerra ao Império Austro-Húngaro. Cinco meses depois, os bolcheviques chegaram ao poder e criaram o primeiro governo proletário que o mundo conheceu. 101 anos depois, em julho de 2018, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Helsinki, Finlândia, deu uma bola de futebol, de presente ao presidente dos EUA, Donald Trump. O 'estado profundo' e o chamado Partido da Guerra, urraram de fúria [NTs].
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