A hora da bastilha
Durante a manhã, a tarde e o início da noite do dia 8 de julho de 2018, a Polícia Federal recusou-se a cumprir imediatamente uma ordem judicial que determinava a soltura do presidente Lula.
A desobediência da Polícia Federal tinha como objetivo cr
iar as condições para anular o habeas corpus obtido por Lula.
O habeas corpus fora concedido pelo desembargador Rogério Favreto, que no final-de-semana de 7 e 8 de julho era responsável pelo plantão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
Ao não cumprir imediatamente a ordem de soltura, a Polícia Federal manteve o presidente Lula sequestrado por várias horas, sequestro respaldado pelo ministro da Segurança Pública Raul Jungmann e apoiado pelo oligopólio da comunicação.
A primeira tentativa de anular o habeas corpus partiu do juiz Sérgio Moro, que a imprensa noticiou estar de férias e fora do país.
A segunda tentativa partiu do desembargador Gebran Neto, relator do processo contra Lula no TRF4.
Contra estas duas tentativas, o desembargador Rogério Favreto reafirmou sua decisão.
No final do dia 8 de julho, o desembargador presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), Carlos Eduardo Thompson Flores, determinou que o presidente Lula deveria continuar preso.
O descumprimento da ordem de soltura por parte da Polícia e a anulação do habeas corpus --sem respeitar nem os ritos, nem os escrúpulos -- não devem surpreender ninguém: golpistas são golpistas!
Portanto, aplicam o "estado de direito" quando lhes convém, reservando aos seus inimigos o "estado da direita".
E por qual motivo não cumpriram os ritos?
Porque respeitar os ritos, seguir os procedimentos, implementar o devido processo legal, implicaria em aceitar que o presidente Lula passasse pelo menos algumas horas, talvez alguns dias, fora da cadeia.
Essa possibilidade atemoriza os golpistas mais do que qualquer outra coisa.
Porque Lula livre conduz a Lula candidato, Lula candidato conduz a Lula presidente, Lula presidente conduz à derrota do golpe.
Note-se que o habeas corpus foi concedido em resposta ao seguinte fato: o presidente Lula não teve seus direitos políticos cassados, é pré-candidato à presidência da República e está sendo impedido de participar das atividades da pré-campanha.
A juíza responsável pela execução da pena recebeu vários pedidos, por parte da defesa do presidente, para garantir por exemplo o direito de Lula conceder entrevistas aos meios de comunicação.
Como a juíza não respondeu a estes pedidos, três parlamentares federais impetraram um habeas corpus junto ao TRF4. E o desembargador Rogério Favreto acolheu o habeas corpus.
Ou seja: a decisão do desembargador parte do princípio que Lula pode ser candidato.
Fica óbvio, portanto, o motivo pelo qual a soltura de Lula, por este motivo em particular, era algo absolutamente intragável para o golpismo.
A decisão do desembargador Rogerio Favreto pode ser lida neste endereço.
A decisão do desembargador é uma lição para todos os integrantes do poder judiciário que discordam do "Estado de exceção": decisões individuais e monocráticas, mesmo que venham a ser desacatadas e revertidas pela quadrilha golpista, cumprem um papel importante na conscientização e mobilização política.
A decisão do desembargador é, também, uma lição para quem está engajado na defesa do presidente Lula. Ele quase foi solto por um habeas corpus fundamentado em argumentos políticos. E não, como se vinha tentando, em base a argumentos técnicos, nem pelo fato de ter sido condenado injustamente.
A decisão do desembargador revela, por fim, as fragilidades e fortalezas do golpismo.
Uma destas fragilidades é a evidente ilegalidade e perseguição movidas contra o presidente Lula, que vão ao ponto de juízes estimularem policiais a desrespeitarem uma ordem judicial.
Uma destas fragilidades é a evidente ilegalidade e perseguição movidas contra o presidente Lula, que vão ao ponto de juízes estimularem policiais a desrespeitarem uma ordem judicial.
Já uma das fortalezas consiste na articulação entre setores dominantes no aparato judicial, policial e midiático.
Noutros termos: eles estão decididos a fazer qualquer coisa e, ao menos por enquanto, tem os meios para fazer qualquer coisa.
E o que mais eles podem fazer?
1.Os golpistas mantiveram Lula preso, mas perderam a batalha da opinião pública no dia 8 de julho. Farão de tudo para reverter esta derrota, tentando apresentar a decisão do desembargador Rogério Favreto como artimanha partidária, erro técnico e ilegalidade. Buscarão estigmatizar Favreto, para atemorizar outros garantistas. É preciso responder a esta ofensiva.
2.Os golpistas dizem que Lula não poderá ser candidato, mas não tem como impedir que ele registre a candidatura no dia 15 de agosto. Entretanto, os golpistas podem tentar antecipar simbolicamente a decisão, para estimular dúvida e confusão no eleitorado de Lula. Ou até podem tentar constitucionalizar, no STF, a prisão em segunda instância: nesta hipótese, a maioria de 6 a 5 contra o habeas corpus de Lula poderia se repetir, agora como maioria de 6 a 5 contra o preceito constitucional da presunção da inocência. É preciso se preparar para cada uma destas possibilidades.
3.O núcleo duro dos golpistas enfrenta dificuldades eleitorais. Seus candidatos preferidos (como Meirelles e Alckmin) não chegam a 10% das intenções de voto. As pesquisas informam que todas as candidaturas golpistas, Bolsonaro inclusive, perdem para Lula no primeiro e no segundo turno. Os golpistas podem tentar acelerar a unificação entre eles, inclusive apostando em algum nome de "centro" que aceite o papel de candidato alternativo a Lula e ao PT. É preciso desmascarar estas movimentações e encorpar ainda mais nossa força eleitoral.
4.A política do governo golpista, as decisões do Parlamento e do Judiciário jogaram o país na crise, na regressão e no caos. Os golpistas continuam encaminhando medidas, como no caso da Embraer e da Eletrobrás, que no limite buscam tornar irreversível a regressão neoliberal. Alguns dos desdobramentos disto puderam ser vistos no movimento dos caminhoneiros, que alguns dizem pode ser retomado proximamente. Como solução ao caos que eles mesmos criam, os golpistas agitam cada vez mais o espantalho da "ordem unida", leia-se, de uma intervenção e/ou golpe militar. É preciso deixar claro quem está por trás do caos e o caos ampliado que especulam causar.
Que podemos fazer diante disso? Por exemplo:
1.Travar a "batalha das narrativas", sempre explicando o pano de fundo: os golpistas mantém Lula preso e querem impedir sua candidatura, para seguir prejudicando o povo brasileiro, pisoteando as liberdades democráticas e golpeando a soberania nacional. Centrar fogo no aparato judiciário e no oligopólio da mídia. É preciso uma ação de comunicação de outra qualidade e potência.
2.Apoiar ativamente a luta do movimento sindical e popular contra o governo golpista e suas medidas. A paralisação do dia 10 de agosto cumpre papel importante neste sentido. Jogar energias na mobilização de massa.
3.Apresentar ao país nosso programa emergencial, destacando a revogação das medidas golpistas e a convocação de uma Assembleia Constituinte.
4.Transformar a inscrição da candidatura de Lula, no dia 15 de agosto, num grande ato de massas. O ideal é que a candidatura seja respaldada por um abaixo-assinado em que milhões de brasileiros e de brasileiras apoiem a inscrição. É preciso ter pelo menos 100 mil em Brasília para inscrever Lula.
5.Articular a mobilização interna com a mobilização internacional. Há um potencial imenso, ainda subaproveitado.
6.Preparar-se para o agravamento das tensões e das ameaças.
Uma das ameaças recorrentes é a da intervenção militar. Não devemos subestimar este risco, até porque certa intervenção já está em curso: militares assumindo cada vez mais postos e tarefas no governo federal, militares da ativa fazendo "pronunciamentos", pesquisas indicam que cresce o apoio a uma ditadura como saída para a crise, fortalecimento da "versão eleitoral" do golpe, que é a candidatura de Bolsonaro.
Mas não se enfrenta um golpe, capitulando frente a ele. Não se enfrentam ameaças de intervenção e ditadura militar, recuando e calando covardemente. Não se derrota os golpistas, com candidaturas que aceitam o golpismo. E, principalmente, não se derrota uma candidatura como a de Bolsonaro, sem apresentar uma saída popular para a crise econômico-social alimentada pelo programa "ponte para o futuro".
Neste sentido, não há como separar a chamada questão democrática da luta em defesa das condições de vida das camadas populares.
É por isso que dizemos: contra o golpismo, contra as ameaças de ditadura militar, contra Bolsonaro, contra o caos, neste momento só há uma saída ao mesmo tempo democrática e em favor dos setores populares: a eleição de Lula.
Claro que a eleição de Lula provocará reações dos golpistas de 2016 e dos que defendem o golpe-dentro-do-golpe. Mas iludem-se os que acham que será possível derrotar o golpe, sem travar enfrentamentos e sem correr riscos.
Outra ameaça recorrente é a de que o Partido dos Trabalhadores corre o "risco de isolamento." Entre os que falam isso, há muita gente de boa fé, motivo pelo qual é preciso explicar pacientemente qual o problema e como enfrentá-lo.
Existem cerca de 20 pré-candidaturas presidenciais. Hoje uma delas, a de Lula, tem mais força eleitoral que todas as demais somadas. Isso não elimina a necessidade de ampliar os apoios. Mas coloca o problema no grau devido.
Destas cerca de 20 pré-candidaturas presidenciais, quatro se posicionaram contra o golpe: Lula (PT), Manuela (PCdoB), Boulos (PSOL) e Ciro Gomes (PDT).
Dos demais partidos que são ou foram da esquerda brasileira, o Partido Comunista Brasileiro deve apoiar a candidatura de Boulos. O Partido da Causa Operária deve apoiar a candidatura de Lula. O Partido Socialista Brasileiro, que apoiou e articulou em favor do golpe contra a presidenta Dilma, tende neste momento a apoiar Ciro Gomes. E a Rede, que também apoiou e articulou em favor do golpe, tem Marina Silva como sua candidata. E o PSTU, que para ser gentil lavou as mãos diante do golpe, também terá candidatura própria.
Sendo assim, é por definição muito estreito o leque de alternativas partidárias com quem o PT poderia fazer alianças no primeiro turno da disputa presidencial. E mesmo estes possíveis aliados teriam que estar dispostos a aceitar a tática de inscrever Lula e uma candidatura a vice-presidência também petista no dia 15 de agosto.
Portanto, independente da política de aliança que se defenda adotar nos estados – acerca desta política há óbvias divergências -- a política de alianças nacional será basicamente com movimentos sociais e lideranças democráticas.
Entretanto, este indesejado "isolamento de alianças partidárias" não implica em isolamento eleitoral, nem no segundo turno, nem no governo. Aliás, se fosse assim, 11 governadores (12 com o do Amapá) não teriam se pronunciado em seguida ao 8 de julho.
Entre as ameaças, está também a falta de esperança que volta-e-meia atinge alguns dirigentes da esquerda brasileira, contaminando por tabela a militância, nossas bases sociais e nosso eleitorado.
De fato, as coisas estão difíceis e podem ficar ainda mais difíceis. E erra muito feio quem pintar um quadro cor-de-rosa.
Mas observemos a coisa do ângulo dos inimigos do povo: eles deram um golpe, controlam o aparato de Estado, os meios de produção e de comunicação, tem maioria no parlamento e mesmo assim estão com dificuldades para derrotar Lula e o PT nas eleições de 2018.
A nossa resiliência tem bases objetivas e subjetivas, entre as quais se destacam os efeitos da "ponte para o futuro" golpista sobre as condições de vida da classe trabalhadora depois de 2016 versus a memória das transformações positivas que ocorreram depois de 2003.
Nossa resiliência é um dos motivos que torna possível derrotar o golpismo. É, portanto, uma das bases reais da esperança.
A esperança não garante a vitória. Quem garante a vitória é a luta. Vence a luta quem combina adequadamente força e política correta. Mas só luta de verdade quem acredita que pode vencer.
Neste sentido, o ocorrido no dia 8 de junho ajudou a demonstrar, para centenas de milhares de militantes e para milhões de simpatizantes, que a luta pode tornar factível o que antes parecia totalmente impossível.
Uma quarta ameaça que enfrentamos é a distância entre a teoria e a prática de vários de nossos dirigentes e militantes.
Antes, predominava entre nós a ilusão republicana no lado de lá. E a prática era coerente com isso: não nos preparamos à altura para enfrentar o golpe.
Hoje, está quase predominando entre nós a percepção de que o lado de lá não tem limites, não tem escrúpulos e não tem dúvida sobre o que deseja: manter Lula preso, fraudar as eleições 2018, fazer a esquerda brasileira deixar de ser alternativa de governo, matar qualquer chance futura de sermos alternativa de poder e, fazendo tudo isto, criar as condições para ampliar a desigualdade social, esmagar as liberdades democráticas e pisotear a soberania nacional.
Entretanto, embora na teoria a ilusão republicana tenha perdido muito espaço, na prática seguem predominantes os "hábitos de tempos pacíficos".
Acontece que agora "os tempos são de guerra". Sendo assim, é preciso fazer o lado de lá perceber que temos escrúpulos e que por isso mesmo estamos dispostos a fazer tudo o que for necessário para defender nossos direitos e liberdades.
E quem é o "lado de lá"?
Para muitos militantes, o lado de lá tem nome e sobrenome. Por exemplo: Sérgio Moro.
Para outros, o lado de lá tem CNPJ: a Rede Globo, por exemplo.
A grande maioria ainda não compreendeu que o "lado de lá" não é este ou aquele golpista, esta ou aquela empresa ou instituição. O lado de lá é tudo isso, mas é muito mais.
O lado de lá é a classe dominante brasileira e seus aliados internacionais.
Este é o tamanho do inimigo que precisamos derrotar.
Esta classe dominante e seus aliados tomaram a decisão e a estão aplicando: não respeitam a legalidade, nem aceitam que o povo eleja livremente o próximo presidente da República.
Esta é a conclusão teórica a que está chegando a maior parte da esquerda brasileira.
Mesmo assim, e por isto mesmo, e corretamente, temos aproveitado toda e qualquer brecha que nos permita fazer prevalecer a legalidade e as liberdades democráticas. A síntese disto é Lula livre, Lula candidato e Lula presidente.
Mas caso a classe dominante mantenha Lula preso e impugne sua candidatura, qual será a conclusão prática que vamos tirar disto?
Especificamente no caso das eleições presidenciais, que tática vamos adotar?
Dizem que esta decisão deve ser tomada depois de 15 de agosto, caso sejamos derrotados. Isto é verdade.
Outros dizem que antecipar a discussão sobre esta possibilidade pode prejudicar nosso posicionamento futuro. Isto já não é tão verdade.
Pois embora a tática frente a uma fraude não seja uma questão de princípio, é uma questão de princípio falar a verdade para a classe trabalhadora e para o povo brasileiro.
E a verdade é que eleição sem Lula é fraude.
E, cá entre nós, se ordem judicial a favor pode ser desrespeitada, a recíproca é verdadeira. Só assim caem algumas bastilhas.
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