“A democracia no Brasil está ameaçada com a prisão de Lula”, diz dirigente do partido que mais cresce na Bélgica



“A democracia no Brasil está ameaçada com a prisão de Lula”, diz dirigente do partido que mais cresce na Bélgica

 
David Pestiau, vice-presidente do Partido do Trabalho da Bélgica
David Pestieau, 49 anos, vice-presidente do PTB (Partido do Trabalho da Bélgica), não hesita em afirmar o apoio da sigla, cujo símbolo também é uma estrela, ao ex-presidente brasileiro, preso há mais de dois meses. Diferentemente do PT, o PTB se declara um partido de extrema esquerda, cuja concepção é de que o mundo precisa de mudanças radicais, que ataquem o sistema neoliberal em si, mas que olhe diretamente para as reivindicações imediatas da população.
Foi a partir dessa compreensão, ao mesmo tempo utópica e pragmática, que o partido, fundado em 1979, deu uma virada eleitoral. Do tradicional 1% dos votos, foi a 3,7% em 2014 e oscila entre 15 e 25% das intenções de voto nas pesquisas para as próximas eleições ao parlamento belga. Para Pestieau, engenheiro civil de formação, a esquerda latino-americana foi a precursora do movimento esquerdista atual na Europa, mas se recusa a falar em inspiração. Prefere se ater à troca de experiências, observando o que deu certo e o que deu errado em cada país.
De todo modo, afirma ser necessário defender quem tenta mudar um modelo econômico que há décadas leva o mundo a uma crise ambiental, política e social insuperável. Nesta entrevista, ele explica os princípios de seu partido, destinatário da maior parte do salário de seus deputados, que são obrigados a viver em bairros populares, com o salário médio dos trabalhadores.
Fala também sobre o crescimento da extrema direita na Europa, as perspectivas da esquerda na América Latina e a situação da democracia no Brasil.
Vocês mesmos se classificam como um partido de esquerda radical. Porque não apenas esquerda?
Primeiramente porque pensamos que a situação necessita de soluções radicais. Nos definimos como uma esquerda marxista. Constatamos que a crise do capitalismo é profunda. Ela é uma crise econômica, mas também democrática, como se vê em todo mundo com a ascensão de partidos autoritários, as tentativas de desestabilização que vocês viram no Brasil. Há também uma crise climática que ameaça a humanidade e que está ligada ao sistema econômico em que estamos. Porque os princípios das multinacionais, grupos privados, provocam tensões entre os blocos econômicos.
A esquerda tradicional não mudou grande coisa. Foram um veículo de propagação de ideias neoliberais em diversos países europeus, como a Alemanha e a Bélgica. Ela disse: “vamos transformar um pouquinho as coisas. Vamos transformar o capitalismo em mais social e humano”. Foi um fracasso total. Estamos numa crise profunda na Europa. Estagnação econômica, crise política e todas as outras crises. Nós precisamos de uma solução radical. Para nós, radical vem do termo “raiz”. É necessário ir até a raiz das coisas.
Em muitos países os políticos têm receio de utilizar o termo “radical” em relação ao eleitorado. Vocês não têm?
Não temos medo dessa palavra. Não estamos falando de apocalipse. Estamos reivindicando mudanças profundas da sociedade. São mudanças que correspondem à razão. Reivindicamos uma mudança de paradigma em relação a uma situação que é infernal. O mundo jamais conheceu tamanho nível de desigualdade, 1% que detém 99%.
Mesmo nas sociedades medievais ou antigos impérios?
Certamente. Economistas como Piketty confirmam que as riquezas são tão astronômicas, mas concentradas em tão poucas mãos, como no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, uma explosão de fortunas de modo colossal. Enquanto isso, a renda de dois terços dos assalariados dos países industriais, estagnaram nos últimos dez anos. Eles não progrediram, mas até mesmo diminuíram ao mesmo tempo em que as ações na bolsa explodiram. Então há uma captação maior de riquezas.
A crise de 2008 atingiu sobretudo os trabalhos, os camponeses e não aqueles que são o coração do sistema. O dinheiro que foi acumulado pelos bancos e grandes empresas serviu para fazer fusões, para concentrar o capital em algumas mãos. Quer dizer, o dinheiro, no lugar de ser reinvestido na sociedade, foi investido na especulação financeira. Isso é revoltante porque quer dizer que as pessoas constroem riquezas todos os dias nas empresas que vão ser monopolizadas cada vez mais por grandes parasitas dos tempos modernos.
Isso nos leva a questionar o sistema em si. Marx, cujo bicentenário é celebrado este ano, já havia explicado isso, mas eu diria que hoje ele tem mais razão hoje do que há duzentos anos. A floresta vira mercadoria. Creches viram mercadoria. Tudo que era de domínio público vira mercadoria. Isso nos preocupa não só porque faz mal às pessoas, mas porque produz riqueza de um lado e pobreza do outro.
Seu partido tinha em torno de 1% dos votos por décadas. Em 2014, essa realidade começou a mudar, com mais de 3% dos votos. Do ano passado para cá, as pesquisas mostram entre 15% e 25% dos votos para as próximas eleições este ano. Que fatores permitiram esse crescimento?
Acredito que há dois fatores fundamentais para o crescimento do PTB. Primeiro, a crise política e econômica de que falávamos. Isso a gente vê por toda a Europa, através da ascensão de partidos como o Podemos na Espanha, Mélenchon na França, Jeremy Corbyn (na Inglaterra).
Todos partidos que se desenvolvem porque há um desejo das pessoas por algo de radicalmente diferente do que elas forças tradicionais políticas que elas conheceram. Os partidos tradicionais disseram às pessoas que a crise de 2008 era apenas um acidente de percurso. E em praticamente toda a Europa, deu-se uma chance a eles, ou duas. Sarkozy, depois Hollande (na França), vimos isso na Alemanha, por todas as partes. Desde 2014, vê-se na Bélgica e na Europa partidos que são externos ao sistema tradicional, fora da casta política, vê-se infelizmente o desenvolvimento de partidos de extrema direita, que, como viu-se na história, são muito perigosos, que são nacionalistas, autoritários, racistas, apresentam uma certa demagogia que capta em parte a raiva das pessoas, mas também vemos a emergência dos partidos que se apresentam como esquerda radical.
Esse anseio se da nao so por causa da crise, mas também porque as pessoas desconfiam muito das elites políticas, da casta política. Esse é o primeiro elemento, muito importante. Depois, vem o nossa evolução como partido. Éramos muito ligados aos “convertidos”, às grandes Verdades e nós escolhemos em 2008 de fazer uma virada. Nos mantivemos nossos princípios marxistas, mas decidimos ser mais concretos, mais diretos, de responder às reivindicações das pessoas: a questão do sistema tributário, do transporte, da energia, da habitação, todas essas questões obtivemos de pesquisas em nível local e nacional.
Tentamos trazer o debate e ultrapassar clichês, entrar num debate muito mais concreto. O partido se tornou muito enraizado na realidade da população. Multiplicamos por 6 o número de filiados ao partido. Passamos de 2500 membros para 15 mil hoje. Isso é bastante para um país pequeno como o nosso.
As reivindicações que você chama de concretas, como a habitação, a energia, aumento do consumo, me parecem as mesmas dos programas do PT no Brasil, que perdeu o poder. Você vê semelhanças entre o PTB (Bélgica) e o PT na forma de fazer política?
Posso falar da realidade como nós enxergamos. Um partido de esquerda como nós tentamos ser deve ser um partido que tem princípios claros, que é a visão de para onde vai a sociedade. É importante nunca perder de vista essa visão, mesmo se não pudermos mudar tudo agora. E ele deve ter princípios éticos dos seus dirigentes. Adotamos como princípio que todos os nossos deputados devem viver com um salário médio de um trabalhador. Eles ganham bem como deputados. Então, devem destinar o resto para o partido e morar em bairros populares. Eles estão entre as pessoas.
Eu sou vice-presidente do partido e moro num bairro popular no centro de Bruxelas, num apartamento modesto.
Então partimos do princípio de que um partido deve servir as pessoas e não se servir delas. A política precisa estar próxima das pessoas, estar apta a responder às reivindicações das pessoas. Por exemplo, temos médicos que trabalham gratuitamente nos bairros. Nós defendemos uma saúde gratuita, uma energia mais barata. Desse ponto de vista, há semelhanças com o programa do PT, no sentido de as pessoas saírem da pobreza. Agora, o que funcionou e o que não funcionou no PT, não posso dar lição.
Somos um pequeno partido, modesto. Mas pensamos que deve haver esses três princípios bem definidos: estar junto à população, princípios éticos fortes e uma visão de sociedade que coloque em xeque o capitalismo. O movimento deve durar, não por uma ou duas eleições, mas poder mudar a sociedade. Sei que o Brasil é um país muito complexo, com diferentes estados federados.
Mas os críticos do PT dizem sempre que o problema do partido foi promover uma política de conciliação de classes. O que vocês propõem é a ideia do combate de classes. Ou estou enganado?
É difícil espelhar o Brasil e a Bélgica. Os pontos de partida são diferentes. A Bélgica está entre os países mais ricos do mundo. A situação do Brasil, no momento em que o PT chegou ao governo pela primeira vez, era um país fortemente dependente dos Estados Unidos, com um número de pobres muito grande. Então, penso que em toda a América Latina a chegada de Lula ao poder foi uma grande mudança e mesmo na Europa. O movimento que aconteceu na América Latina foi precursor do movimento de crítica ao neoliberalismo que chegou mais tarde e temos hoje na Europa.
Na América Latina, as políticas liberais foram adotadas no início dos anos 1980, sendo extremamente danosas. Houve uma forte crítica a elas. Depois, na evolução do PT e na evolução de outros partidos na América Latina, há um debate na esquerda latino-americana: o que faz com que hoje haja tantas dificuldades? E acredito que, meu conhecimento é superficial, há de um lado as fortes de direita, reacionárias, pro-americanas, que jamais digeriram a ideia de que o poder fosse assumido por outros. Vê-se no Brasil, na Venezuela, no Equador, na Bolívia que essas forças tentam fazer a ofensiva de retomar o terreno perdido.
O debate na esquerda latino-americana gira em torno da questão: o que falta? O que é preciso fazer? E preciso se aliar às forças que modificaram um pouco as coisas? Ou é preciso combater de maneira mais ativa as forças reacionárias? Pra isso, é preciso mobilizar as pessoas para não apenas ganhar as eleições, mas para ser capaz de ter o apoio de grandes movimentos populares.
Eu entendi, na última vez que encontramos pessoas do PT, que muito do poder tradicional do Brasil, nas mãos das elites financeiras, do poder judiciário, militar, permaneceu praticamente intacto. Então, nitidamente, estava-se no governo, mas não se tinha o poder. O que se tinha era um elemento do poder. Vimos isso também na Europa. Na Grécia, vimos um governo tentando questionar uma série de políticas de austeridade, do neoliberalismo, e que, num dado momento, foi confrontado ao fato de que o governo não é o poder, não é as forças econômicas, o lobby tentando fazer influência, não é o poder judiciário, não é o exército, ou seja, os velhos defensores da ordem vigente.
Acredito que ainda tem os Estados Unidos querendo se envolver no que acontece na América Latina. E que mexe seus pauzinhos. Então, acredito que no desenvolvimento do movimento social e política da América Latina, é lógico que as experiências dos governos de esquerda conduzirão a uma reflexão sobre como ir mais longe agora, como desenvolver um movimento para realmente mudar as coisas, e contestar as estruturas muito fortes e antigas que querem defender o status quo, que querem defender o capitalismo tal qual ele é hoje.
Devemos voar, ter uma visão sobre a mudança das coisas, mas também devemos ter os pés no chão. Se voamos demais, perdemos o contato com as pessoas, não estaremos com elas para mudar a sociedade. Se estamos com os pés demais no chão, perdemos a visão do todo. Então, devemos ter os dois. E essa dialética, esse equilíbrio que devemos ter na política não é clara. Tanto a esquerda latino-americana quanto a  esquerda europeia procuram soluções, novas vias para resolver a questão. Eu sou muito prudente em relação ao que acontece no Brasil. O PT e o PTB são partidos diferentes. Temos contato com diferentes partidos do Brasil, com o PCdoB, com o PT… Escutamos os partidos, compartilhamos experiências e os escutamos.
Quais são suas inspirações atuais?
Não temos um modelo de sociedade, algo do tipo “vamos copiar tal sistema”. Nos concentrarmos nas diferentes experiências, levando em conta que elas são específicas. Por isso, focamos muito no intercâmbio internacional entre forças e partidos de esquerda radical, marxistas, comunistas, do mundo, sindicatos, associações, para obter o que há de mais interessante, útil para desenvolver o combate na Bélgica, na Europa e no mundo.
Por isso, estamos presentes na América Latina, no Foro de São Paulo. Estamos sempre prontos para escutar as experiências na Bolívia, na Venezuela, no Brasil…  Mas obviamente não somos um partido da America Latina. Não partimos de uma visão mítica, como se tudo estivesse maravilhoso por lá. Vamos com um espírito aberto, de intercâmbio e crítico. Há um grande movimento social na França contra o governo de Macron. Atuaremos na solidariedade a esse movimento. Nos interessamos no que acontece Grécia, na greve de 8 de março na Espanha.
Por que pesquisas recentes mostram uma queda na adesão à greve dos ferroviários na França e um grande apoio popular às reformas de Macron?
Estamos num combate de todo modo difícil. O governo da França quer implementar uma privatização disfarçada do sistema ferroviário. A lógica que ele utiliza, a gente vê por toda a União Europeia. Vocês viram isso na América Latina há muito tempo e sabem que é ruim, que a privatização leva a catástrofes.
Na França, não atacam apenas o sistema ferroviário, mas também os sindicatos porque sabem que os ferroviários são uma parte ativa do movimento trabalhista. Vemos um combate que não tem a ver apenas com o sistema ferroviário, mas com um modelo de sociedade. Mas o governo tenta dividir a população, dizendo que há privilegiados, que há gente que se aproveita do sistema, que bloqueiam, impedem… é um combate no qual o governo, com o apoio de grande parte da mídia e da classe política, tenta convencer a população.
Há um movimento social e sindicatos tentando levar outra mensagem. Mas o combate é desigual porque, em relação à televisão, é preciso poder apresentar uma nova mensagem. Apesar disso, vemos que (a greve) dura quase dois meses, com dificuldades, claro. Todos os partidos da direita tradicional e da esquerda social-liberal tentam implementar a reforma social com a ideia de que não há alternativas, there is no alternatives – TINA, como dizia Thatcher. E preciso impedi-los. Aqueles que não combatem perdeu. Essa é a nossa filosofia. Na Bélgica, há uma tentativa de fazer uma reforma da previdência.  Há um movimento semelhante em outros países europeus. Precisamos de um movimento social para barrar esse rolo compressor.
Quem está vencendo essa batalha em relação à população, as forças do governo?
E uma queda de braço. Às vezes, ela pende para um lado ou para outro. Veremos. A situação é desigual. Se os ferroviários não receberem o apoio de outros setores da sociedade e Macron conseguir dividir as pessoas, será difícil ganhar essa batalha. Mas não significa que perdendo uma batalha, perde-se a guerra. Eu sempre tenho esperança que há avanços nesse movimento. Há o movimento dos estudantes, nos hospitais, na energia, há uma série de pessoas que hoje nao estao contentes com a política. O problema na França é como unir essas pessoas para se opor. Será difícil dessa vez. Mas a história mostra que num dado momento isso vai parar e a história francesa é uma história de luta. E aprenderemos como fazer melhor esse tipo de combate.
Por que há um crescimento dos movimentos populistas de direita, como o Movimento 5 Estrelas na Itália?
Eu acho que nesse momento há uma crise profunda na Europa. Há uma crise mundial. Mas na Europa, a crise é reforçada pela política da União Europeia, uma política de austeridade, de privatização, restrição, de desregulação do mercado, com a ambição de exportar, baixar salários. Mas para haver exportação, é preciso que alguém importe. Trump está focado na questão militar. O crescimento dos países emergentes diminuiu na comparação com 10 anos atras. Então, quando se depende da exportação, como a União Europeia (UE), sob o comando da Alemanha, necessita-se dos países que estão em desenvolvimento.
Ou precisa-se que outros países da UE sigam o exemplo da Alemanha. Requer-se deles o mesmo tipo de programa, que não corresponde à sua realidade. Então, vê-se cada vez mais que as regras impostas pela União Europeia sufocam os países, levando à explosão do desemprego entre os jovens, aumentando a precariedade entre eles, sobretudo no sul da Europa. Em relação a isso, dizemos que a União Europeia tem três possibilidades: permanecer como ela está, tornando-se cada vez mais autoritária, unindo países numa espécie de prisão econômica e democrática, com medidas cada vez mais fortes. Foi assim na Grécia, onde houve uma imposição de maneira quase ditatorial ao governo eleito do partido Syriza, para dizer: “vocês devem aplicar um programa contrário ao seu programa eleitoral”. Nao ha escolha democrática fora dos tratados neoliberais europeus, fora da austeridade. Você tem a possibilidade de escolha nas eleições, mas no final, essa via lhe será imposta.
A segunda via, que se desenvolve nos últimos quatro anos e é muito perigosa, já havíamos previsto e anunciado isso na crise, em 2011, que diante dessa corrente autoritária, haveria forças querendo se apoiar na ideia do Estado-nação, querendo ter uma política nacionalista, uma política que defende o desenvolvimento do capitalismo em apenas um  país. Vemos isso na Itália, muito forte o movimento 5 estrelas e da Liga, um sentimento que existe no patronato italiano, que pensa que eles terão uma posição melhor sozinhos do que o quadro atual, seguindo o receituário alemão, com uma estagnação colossal. A Itália é a terceira economia da zona do euro, segunda economia industrial, mas a indústria está em decadência. Em relação a isso, há o perigo de que uma segunda força se desenvolva, a via do esfacelamento da Europa e da oposição entre os diferentes países, o que já conhecemos no passado. O que acontece na Itália é um símbolo da política europeia. Para nós, o nacionalismo e as políticas da extrema direita são um produto da União Europeia; a vontade de unir com a autoridade, da concorrência, da desigualdade entre os povos, que se obtém como em um espelho o nacionalismo, o autoritarismo racista.
A terceira via, radicalmente diferente, é a Europa da solidariedade, da cooperação entre os países, na qual cada país se apoia no ponto forte do outro. Mas isso requer questionar o modelo econômico. Nós pensamos que mais cedo ou mais tarde chegaremos a essa solução, porque é a única viável sem que caiamos na guerra ou no caos mais uma vez na Europa.
Então você diz que é possível ficar na União Europeia, ficar no Euro, de outro modo?
Pensamos que é possível que amanhã a União Europeia acabe. Nao sera nossa culpa. Não somos nacionalistas. Somos anti-nacionalistas. Somos favoráveis à colaboração entre os povos, entre nações. Agora se houver um esfacelamento da UE, reivindicaremos um reagrupamento entre os países, sob o modelo da cooperação e a solidariedade. Vocês conheceram na América Latina a ideia de construir uma alternativa à ALBA, a América Latina pró-Estados Unidos. Aqui, também precisamos de um projeto que apresente uma alternativa. A União Europeia não é boa do jeito que ela está hoje. Somos da solução continental, não aquela em que cada país vai se virar sozinho.
Somos um continente relativamente pequeno, com aproximadamente 540 milhões de habitantes. Temos características bastante diferentes para cada país. Seria preferível de ver as coisas a partir de uma escala. Por exemplo no caso da Bélgica, uma escala que ultrapasse a de um país de 10 milhões de habitantes, o que seria um estado do Brasil. Pensamos em modos de federalizar a luta e federalizar o combate. Nesse quadro, não acreditamos que a solução seria uma separação do euro, da União Europeia de modo unilateral. O Reino Unido saiu da União Europeia e estão sendo confrontados a problemas do capitalismo, têm problemas graves. Não digo que é melhor ou pior. Digo que eles não resolveram o problema com algo de totalmente diferente.
O BREXIT também é resultado do populismo de direita na Europa?
Absolutamente. Aqueles que fizeram a campanha do BREXIT se apoiaram sobre aspirações existentes na população que eram legítimas: “não dizemos nada na política da União Europeia. Não decidimos. Constatamos que há um dumping social. Há os trabalhadores que vêm para cá com salários muito mais baixos”.
Havia uma aspiração no momento do voto, mas ela foi deturpada pelos políticos do BREXIT, que são forças de direita, como Boris Johnson, o UKIP, pessoas que tinham outra coisa em mente. Vemos que o verdadeiro objetivo era se aproximar mais dos Estados Unidos. Não era para ter uma política social independente, voltada para as necessidades dos britânicos. Então, utilizou-se o racismo e a xenofobia na campanha. O mais grave é que não houve nenhum sinal da União Europeia dizendo: há algo de errado na maneira como estamos fazendo esse bloco. Essa Europa baseada e construída sobre multinacionais, precisamos mudar isso.
Não. Há um movimento profundo e contrário a isso. Houve um projeto de constituição europeu em 2005, que foi rejeitado pelo povo francês e holandês. Na Bélgica, nem pudemos votar. E continuaram num processo que se mostra às pessoas como autoritário, cujo poder de decisão é cada vez mais retirado dos Estados em prol das multinacionais da energia, dos bancos, e não do voto.
Não há nenhum questionamento pelos dirigentes da União Europeia de sua política. Pelo contrário, eles dizem: vamos fazer mais e com mais agressividade. A visão deles é transformar a Europa numa grande potência econômica para fazer frente aos Estados Unidos e à China. Eles querem se tornar, como diz Merkel, uma força nao so econômica, mas também política e militar que conta no mundo. Mas a partir dessa perspectiva, baseada no lucro, chegaremos a enfrentamentos, guerras, com um autoritarismo interior que vemos hoje.
Você fala de Merkel, mas é também o projeto de Emmanuel Macron, não?
O motor da Europa sempre foram os interesses franco-alemães. A União Europeia é um projeto sustentado pelos governos de todos os países. Ninguém decidiu entrar com uma arma na cabeça. Eles decidiram entrar porque pensam que num grande mercado, terão mais lucro para seus patrões. A convicção deles é que tendo um mercado maior, terão mais força.
A motivação da criação da União Europeia é o interesse das multinacionais, não o desenvolvimento social, do serviço público, não o poder de compra dos cidadãos. Todas as decisoes sao tomadas em função de lobby. Tem mais gente trabalhando com lobby aqui em Bruxelas do que na Comissão Europeia. Muitas leis europeias são escritas por esses lobbies. É quase como nos Estados Unidos um lobby aberto.
Qual é a sua perspectiva sobre as próximas eleições presidenciais na América Latina?
Nos anos 2000, tivemos uma ascensão de forças de esquerda anti-neoliberais. Agora, vê-se a ofensiva do establishment. Os Estados Unidos tiveram um papel na desestabilização dos governos de esquerda. Isso é evidente.
No Brasil também?
Não é possível compreender o que acontece no Brasil ou na Venezuela sem compreender a vontade dos Estados Unidos de tratar a América Latina como seu quintal. Eles desenvolvem outros métodos de boicote, sabotagem, oposição violenta. Ocorre também no Equador, para interromper políticas progressistas. Na Venezuela, a situação é muito difícil. Nosso olhar é crítico, não de admiração. Ao mesmo tempo, devemos ser solidários com as forças que tentam promover um desenvolvimento adequado.
Sabemos que as forças que intentam impor o poder ao governo Maduro são reacionárias, são muito mais danosas. No México, há a possibilidade que pela primeira vez haja um presidente de esquerda, que se descole da política americana. Obrador me parece alguém moderado. Ele representa uma aspiração forte por mudanças, notadamente pela situação de deterioração durante os últimos 15 por conta do acordo de livre-comércio com os Estados Unidos.
Quando vemos que é um país rico, com muitas potencialidades, é preciso refletir. Nosso ponto de partida é o olhar crítico. Em seguida, podemos questionar nossos amigos: por que não fazem de outro modo? Na Colômbia, não se fala de esquerda ou de direita. Fala-se de um país que onde se possa não voltar a um estado de massacres. Hoje vemos por todos lugares, a ameaça de guerra, em parte pelas forças norte-americanas.
O que você diria a Lula nesse momento?
A primeira coisa: esperamos que seja solto. O processo que o envolve é político e injusto, que busca eliminar alguém que possa representar uma alternativa às forças de direita. Estudamos a sentença. Ela é baseada em motivações políticas, não naquilo que o acusam. Pessoas infinitamente mais corruptas e antipopulares em todos os sentidos do termo, como Temer, estão exercendo cargo. Em relação a Lula, o objetivo é impedi-lo de participar das eleições.
Esperamos que o PT, outras forças de esquerda encontrem uma solução, que seja ele disputar, seja a emergência de uma força de esquerda nesta eleição. Mas há uma democracia ameaçada, como em todo lugar, inclusive aqui na Europa. A tendência ao autoritarismo se torna cada vez mais forte. Tentam-se implantar governos técnicos, fora da política, fora de qualquer processo democrático para impor a política de grandes multinacionais. E isso é muito preocupante porque estamos sob uma ditadura em forma de larva, não é militar e aberta, como os países da América Latina conheceram. Tem mais sofisticação. Passa de uma democracia de baixa intensidade a uma ditadura larval. Apoiamos a campanha internacional pela libertação de Lula.
Em que estado de democracia ou ditadura está o Brasil?
Acho que ainda é uma democracia de baixa intensidade. Há um quadro no Brasil que ainda permite aos trabalhadores de trabalhar e se organizar. Mas vemos que há um perigo muito grande de autoritarismo e devemos saber que o direito democrático é uma questão particularmente importante na América Latina porque o poder tradicional das classes dominantes não hesitou em usar no passado meios extremamente violentos para reprimir o movimento social e político, e isso é preocupante.
Podemos discutir se Lula tinha razão ou não, podemos discutir o que quisermos. Mas sua libertação é uma questão democrática, essencial para dizer que há alguém que representa uma parte da população brasileira e ele deve poder ser candidato à presidência. Trata-se de um princípio. Há indicações fortes dentro e fora do Brasil para indicar que o processo contra Lula não é justo. Se dissermos que seguiu a lei, podemos correr o risco de falar de uma ditadura larval, por todo lugar, inclusive na Europa, uma tentação de colocar o poder nas mãos do establishment.
Não é à toa que Temer, que representa o establishment, os grandes fazendeiros e bilionários. Nos Estados Unidos, é um bilionário direto, rodeado de pessoas de bancos, multinacionais do petróleo, da indústria automotiva. Essa conivência entre mundo político e mundo econômico é cada vez mais evidente. Podem chegar a soluções mais violentas e devemos mobilizar as pessoas para lutar contra isso.
E o que você diria à esquerda brasileira?
Em primeiro lugar, solidariedade, o apoio, nosso apoio como partido de esquerda, o que é nosso dever. As condições sobre as quais ela deve trabalhar são mais difíceis que as nossas na Europa, de todos os pontos de vista, sejam de recursos, limitações democráticas, possibilidades de poder fazer o combate. Sabemos que nos opomos a um sistema que é internacional. Então devemos apoiar todos aqueles que se opõem a esse sistema.
No nosso país, nos confrontamos ao fato que participamos de uma aliança militar muito perigosa, a OTAN, que provoca guerras, que requer o aumento do orçamento militar, a comprar aviões para bombardear populações civis. Se conseguirmos nos unir para uma grande manifestação contra Trump quando ele vir em julho para o encontro da OTAN, nosso combate contra ele, o fazemos de uma maneira. No Brasil, pode-se fazer de uma outra maneira. Estamos num mesmo combate. Do que eu entendi do PT, do PCdoB, há uma reflexão autocrítica do que fizeram nos últimos anos e elaboram uma estratégia para os próximos anos.
Temos confiança que o povo ao final conseguirá superar isso e chegar à esperança. Sabemos que é difícil em todo lugar. A força das classes dominantes vai além da força. Elas propagam o fatalismo, o desespero para impedir as pessoas de mudar o mundo. Por todo modo, eles dizem que não ha possibilidade de mudar as coisas. Há uma força muito grande para paralisar as pessoas. Precisamos construir alternativas à suas práticas e seu modelo de sociedade.

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