Não se esqueçam, quem foi executada iria fiscalizar a intervenção

Daniel Valença: Não se esqueçam, quem foi executada iria fiscalizar a intervenção

Não, não foi só mais uma vítima
por Daniel Valença, especial para o Viomundo
A execução brutal de Marielle Franco e Anderson Pedro chocou o país e resultou em uma gigantesca mobilização popular, especialmente na Cinelândia, a qual foi comparada por Hildegard Angel, à de Edson Luís em 1968.
Era 1968 quando, no interior do restaurante Calabouço, após um ato político contra a ditadura, o estudante secundarista Edson Luís fora assassinado por militares.
Seus companheiros e companheiras, que sobreviveram à execução, conseguiram resgatar seu corpo e realizar um velório-marcha-ato político pelas ruas do centro.
O Rio chorou e parou e, a ele, somaram-se cidades país afora. À época, não fora Edson Luís a única vítima, mas o contexto de sua morte e o post-mortem não deixaram dúvidas de que não se tratava de apenas uma vítima a mais da violência.
Sem dúvida que, para além de Marielle, uma multidão de mulheres, negras e pobres morrem, em geral vítimas de feminicídio, bem como outro grande número de pessoas não encaixadas nessas categorias, são vítimas de violência, para, ao final, conceder ao Brasil a marca de cerca de 50 mil homicídios por ano.
Também é certo que, provavelmente, por muitos anos a Maré e demais comunidades, ou seja, a maioria da população do Rio, não terão uma porta-voz, num poder político hegemonizado por homens, brancos e proprietários, imiscuídos com os interesses empresariais e o chamado crime organizado, como ficou claro nos últimos anos.
Por outro lado, não se trata apenas de mais uma mulher, negra, trabalhadora – e pesquisadora – assassinada.
Essa é, em nossa sociedade, a regra, mas tudo leva a crer que estamos na exceção à regra, ou num Estado de exceção.
Partindo de princípios e interesses opostos, Temer buscou enquadrar o caso na regra: “inaceitável, inadmissível, como todos os demais assassinatos que ocorreram no Rio de Janeiro”.
Se bem é verdade que Marielle se encaixaria nas estatísticas de mulheres, negras e faveladas mortas as milhares em nosso país, também o é que Marielle acumulou funções-chave para essa quadra histórica do país – a relatoria da comissão que acompanha a intervenção militar no RJ.
Paulo Sérgio Santos, líder quilombola na Bahia, em 2014; Simeão Vilhalva Navarro, líder indígena no Mato Grosso em 2015; Nilce de Souza Magalhães, líder do Movimento dos Atingidos por Barragens em Rondônia, José Conceição Pereira, líder comunitário no maranhão, José Bernardo da Silva, líder do MST em Pernambuco, Almir Silva dos Santos, líder comunitário no Maranhão, João Natalício Xucuru-Kariri, líder indígena em Alagoas, em 2016; Waldomiro Costa Pereira, líder do MST no Pará, Luís César Santiago da Silva, líder sindical no Ceará, Valdenir Juventino Izidoro, líder camponês em Rondônia, Eraldo Lima Costa, líder do MST em Pernambuco, Rosenildo Pereira de ALmeira, líder do MST, José Raimundo Souza Júnior, líder quilombola e do MST na Bahia, Fábio Gabriel Pacífico dos Santos, líder quilombola na Bahia, Jair Cleber dos Santos, líder camponês no Pará, Clodoaldo dos Santos, sindicalista no Rio, em 2017; e Jefferson Marcelo, líder comunitário no Rio, Valdemir Resplandes líder do MST no Pará, Leandro Altenir Ribeiro Ribas, líder comunitário no Rio Grande do Sul, Márcio Oliveira Matos, líder do MST na Bahia, Carlos Antonio dos Santos, líder camponês no Mato Grosso, George de Andrade Lima Rodrigues, líder comunitário no Recife, Paulo Sérgio Almeida Nascimento, líder comunitário no Pará, e Marielle Franco, em 2018, foram executados(as).
Deste levantamento organizado pelo Jornalistas Livres não sobram dúvidas de que o golpe de Estado de 2016, para manter-se e avançar sobre os direitos das classes trabalhadoras e grupos subalternos, necessita, por um lado, desmontar as organizações dos trabalhadores – como os sindicatos – e, por outro, eliminar – se necessário, fisicamente – as lideranças que arduamente as classes populares forjaram.
Contudo, em um país de histórico de execução de lideranças populares e de esquerda – relatório da Anistia Internacional de 2017 o colocava, ao lado de México, Colômbia e Filipinas, como um dos mais perigosos do mundo para militantes de direitos humanos –, o que há “de novo” é a execução de Marielle Franco.
Não que a morte de todos e todas as companheiras acima elencados seja secundária. Não que a morte de todas as mulheres e mulheres negras vítimas de feminicídio sejam secundárias. Não que a morte de Anderson Pedro seja secundária.
Mas, pela primeira vez, a execução atingiu uma liderança popular alçada à institucionalidade, na tarefa que pode ser considerada a principal para o atual contexto carioca: fiscalizar a Intervenção.
De sua execução só resultam duas variantes: a escalada autoritária, de violação dos direitos humanos, é tão clara e intensa que determinado grupo sentiu-se à vontade para executar uma autoridade pública – e se o faz com uma autoridade, o que fará na favela ou no campo? O que fará com outras lideranças?
Há, também, uma possibilidade ainda mais perigosa, a de que tal execução tenha sido pensada e refletida no próprio interior da intervenção militar no Rio de Janeiro.
Apenas na História teremos a dimensão do que houve e qual será a resposta à reação popular.
Cinquenta anos após o assassinato de Edson Luís, uma vez mais o arbítrio calou quem o contestou.
O contexto de 2018 e o que virá não autorizam, de maneira alguma, interpretação de que se foi uma vítima a mais.
Não se trata de secundarizar ou aceitar os demais homicídios. Mas de não termos dúvidas de que, nesse momento, para frear a luta política das classes e grupos subalternos, tudo é válido no país, inclusive a eliminação física de suas mais diversas lideranças.
Daniel Araújo Valença, professor do curso de Direito da UFERSA e militante do PT.

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