Alguns aspectos geopolíticos da intervenção federal no Rio

MARCELO ZERO

Alguns aspectos geopolíticos da intervenção federal no Rio

I- Desde a década de 1980, com intensificação na década de 1990, os governos dos EUA passaram a pressionar os governos da América Latina, no sentido de que as forças armadas da região passassem a atuar em segurança pública, mais especificamente no combate ao narcotráfico, tema muito sensível nas eleições daquele país.
II- Essa pressão obedecia a dois propósitos: em primeiro lugar, auxiliar as forças norte-americanas a reduzir o afluxo de entorpecentes aos EUA e, com isso, aumentar os preço das drogas vendidas naquele mercado, diminuindo, dessa forma, o consumo local. Mas havia também outro objetivo, oculto, pelo qual se procurava enfraquecer a capacidades das forças armadas latino-americanas de cumprir sua missão precípua de defender o território e a soberania de seus países. Com isso, os EUA procuravam (e ainda procuram) fazer com que as forças armadas da região se convertam em forças subalternas às forças militares norte-americanas.
III- Foi exatamente por isso que os EUA pressionaram o Brasil , na década de 1990, a desenvolver uma política de desarmamento e de sucateamento das forças armadas, que foi prontamente aceita e implementada pelo governo neoliberal de FHC. De fato, naquela época o Brasil firmou todos os acordos de desarmamentos possíveis, inclusive o TNP.
IV- O ex-chancelar Celso Amorim observa que: "esse pensamento de que Forças Armadas devem combater narcotráfico é lamentável. Eu convivo com essa questão há muitos anos. Eu fui ministro das Relações Exteriores na época do governo Itamar. Na ocasião, veio o secretário de defesa dos EUA, William Perry, e como na época não havia ministro da defesa, eu o recebi, embora ele tivesse contato com vários comandos. Todos estavam muito preocupados com essa ideia de transformar as Forças Armadas brasileiras em instrumento de combate à criminalidade. Essa era a agenda norte-americana. Eles [EUA] diziam algo como 'olha, segurança externa e defesa cuidamos nós'. Isso foi o que eles impuseram no México, e deu muito errado pro México.
V- De fato, a experiência do México, nesse aspecto, tem sido desastrosa. Desde 2005, quando o ex-presidente FOX envolveu as forças armadas mexicanas no combate ao narcotráfico e ao contrabando, que o Exército e a população vivem um pesadelo crescente. Conforme estimativas conservadoras, mais de 100 mil pessoas foram assassinadas nessa guerra inventada pelos EUA, a maioria civis inocentes.
VI- Com efeito, o desgaste é evidente. O uso da força militar foi acompanhado de abusos e assassinatos. As organizações internacionais denunciam a tortura como uma prática comum. E o terrível resultado de episódios como Tlatlaya ou Ayotzinapa (nos quais estudantes secundaristas de esquerda foram chacinados) aprofundou essa desconfiança. É um beco sem saída. A crise da violência no México se aprofundou e não existe uma autoridade civil capaz de responder através da prevenção ou da punição. É por isso que as forças armadas são usadas. Mas é um erro, porque eles não são policiais ou um órgão de justiça. E tal política os expõe (os militares) a uma interação permanente com o crime organizado, que conduz à corrupção e ao desvirtuamento de sua missão.
VII- No México, o colapso das forças policiais, corroídas até a medula pelo narcotráfico, forçou os militares a ocupar espaços cada vez maiores de segurança. "Nossos soldados não podem fazer mais. Proporcionalmente, em nosso território e população, somos o exército mais pequeno do mundo", disse o general Cienfuegos, comandante dessas forças de segurança. "Por parte do tecido civil não há corresponsabilidade, apenas a inação, o que gera uma insatisfação notável dos militares e, claro, o desgaste. Há soldados que protegem escolas em Acapulco, ou que fazem o trabalho da polícia municipal, algo que não deveria ser função militar A essa sobrecarga desvirtuada de trabalho, a ausência de um quadro legal de ação é adicionada. Apesar de o exército ter se mobilizado há mais de uma década, nenhum governo quer regular esse uso que se tornou de longo prazo, sem data para acabar.
VIII- Em outras palavras, o uso das forças armadas no México em segurança pública, assim como na Colômbia, é um completo desastre: aumentou a violência e a insegurança, incrementou os atentados aos direitos humanos, aumentou a corrupção ente os militares, os desviou de sua função de defesa da pátria e da soberania, e provocou grande desgaste e insatisfação na tropa.
IX- Enfim, as forças armadas mexicanas, por pressão do governo dos EUA, são usadas politicamente como força auxiliar dos órgãos de segurança norte-americanos.
X- O ex-chanceler Celso Amorim teme por esse uso político aqui no Brasil. Afirma ele, "a utilização política é grave e (os militares) não estão satisfeitos. Acho que isso está sendo imposto. E o aspecto que seria mais trágico para o Brasil, entre outros, é uma espécie de guerra das Forças Armadas com o narcotráfico. Seria uma desvirtuação da missão das Forças Armadas e um enfraquecimento da missão que é defender o Brasil, o pré-sal, as fronteiras, programas de tecnologia avançada... O que se espera das Forças Armadas é a defesa da nação. Mas claro que há sempre aqueles que têm saudades daquelas Forças Armadas nas ruas."
XI- Não se trata de exagero ou de teoria da conspiração. A ameaça é concreta. Não temos dúvida de que a combinação da Lava Jato, que está destruindo o braço empresarial da Estratégia Nacional de Defesa, com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que reduzirá drasticamente o investimento estatal nessa área, poderá fazer o Brasil retroceder à década de 1990, quando a tônica dada pelo neoliberalismo era a do desarmamento do país.
XII- Ademais desses fatores econômicos, é preciso lembrar que o Exército dos EUA participou, a convite do governo brasileiro, de um exercício militar conjunto que foi realizado, em novembro de 2017, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia. Tal fato revela um fator político preocupante para a soberania nacional, no campo da defesa e da indústria de defesa.
XIII- Tratou-se de uma decisão inédita na história militar recente do Brasil, que causa estranheza. O nosso país, até o presente governo ilegítimo, vinha investindo na gestão soberana da Amazônia, em parcerias com países da América do Sul, estabelecidas em mecanismos de cooperação regionais, particularmente os da Unasul e os da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Assim, esse convite a uma superpotência estrangeira, que não faz parte da Bacia Hidrográfica da Amazônia, representa um "ponto fora da curva", na tradição de afirmação da soberania nacional numa região estratégica para o país.
XIV- Na realidade, esses exercícios vêm na esteira de uma série de iniciativas bilaterais que fazem parte de uma estratégia do governo ilegítimo de reaproximação subalterna aos EUA, tanto no campo da política externa, quanto no campo da política de defesa.
XV- Nesse diapasão, o Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês. Com tal decisão, o governo do golpe investirá na cooperação com os EUA, como forma de "desenvolver" nossa indústria de defesa. Na prática, isso significa renunciar a ter real autonomia no campo do desenvolvimento industrial e tecnológico da defesa nacional.
XVI- Ao que tudo indica, setores das Forças Armadas, hoje hegemônicos com o golpe, renunciaram ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo e, agora, apostam numa relação de dependência com os EUA para o seu reaparelhamento.
XVII- A assinatura do referido Convênio, bem como outras iniciativas recentes, parecem inserir-se dentro do quadro de uma nova estratégia de inserção do Brasil, na órbita dos interesses dos EUA no subcontinente. Tal nova estratégia tende a minar a diretrizes, estabelecidas há vários anos, de o Brasil articular uma estratégia de defesa própria e conjunta do subcontinente sul-americano, mediante, entre outros mecanismos, do Conselho de Defesa da Unasul.
XVIII- Dentro desse novo quadro de dependência, a intervenção federal no Rio, com o uso ostensivo das forças armadas numa função que a desvia de sua missão principal (a defesa da soberania nacional), faz todo sentido para os interesses do Golpe e dos EUA.

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