A intervenção na Venezuela e o Brasil
Aparentemente, os EUA estão pretendendo acelerar os preparativos para uma intervenção mais aberta e incisiva na Venezuela. Após as declarações de Trump, de que não descartaria uma intervenção militar naquele país, o Secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, em discurso na Universidade do Texas, em 1º de fevereiro, sugeriu que solução para a Venezuela poderia vir de um golpe.
Tillerson, em recente passagem pela América Latina, onde visitou México, Peru, Colômbia e Argentina, concentrou todos os seus esforços em convencer os governos desses países a apoiarem medidas mais duras contra o regime chavista da Venezuela. Na Colômbia, o Almirante Kurt Tidd, chefe do Comando Sul dos EUA, reuniu-se com militares daquele país para tratar da “desestabilização regional” causada pela Venezuela.
Tidd tem argumentado que a crise da Venezuela “requeria ações militares para enfrentar a situação humanitária”.
O uso das chamadas “crises humanitárias” para justificar intervenções de todos os tipos vem de longe. A intervenção militar dos EUA contra a Sérvia foi legitimada, por Bill Clinton, como uma ação necessária para lidar com a crise humanitária no Cosovo. Na ONU, essa lógica um tanto estapafúrdia de responder a crises humanitárias com violência ficou conhecida como a “responsabilidade de proteger” (R2P).
De lá para cá, muitas intervenções militares e políticas do interesse dos EUA e aliados foram também justificadas com essa lógica canhestra de enfrentar crises humanitárias com a “responsabilidade de proteger” as populações atingidas. As invasões da Líbia e da Síria foram justificadas, ao menos parcialmente, com essa lógica aparentemente altruísta e humanista.
De um modo geral, as “crises humanitárias” são criadas ou agravadas por aqueles interessados na intervenção e na derrubada de regimes considerados inconvenientes ou perigosos aos interesses geoestratégicos dos EUA e aliados. Esse investimento nas “crises humanitárias” muitas vezes envolve o dispêndio de grandes quantias de dinheiro e o uso de bloqueios comerciais e financeiros. Na Ucrânia, por exemplo, calcula-se que os EUA tenham gasto cerca de US$ 5 bilhões, para promover os protestos violentos e a “revolução laranja”.
No caso da Venezuela, esse investimento na desestabilização do regime chavista vem de longe. Em 2002, os EUA contribuíram decisivamente para promover o golpe de Estado contra Chávez. O fracasso do golpe não impediu, entretanto, que tais esforços continuassem.
Não há dúvida que os EUA apoiam e financiam a oposição mais radical da Venezuela, liderada por Rodolfo López, um político educado em escolas privadas norte-americanas. Tal apoio inclui o financiamento às violentas “guarimbas” da oposição, que pretendiam criar um clima de guerra civil na Venezuela.
Com a queda dos preços de petróleo, commodity vital para a Venezuela, os EUA aproveitaram para iniciar uma guerra econômica, comercial e financeira contra o regime chavista, de modo a criar carestia e inflação. O crédito da Venezuela no mercado internacional foi cortado, mesmo com o país tendo pagado sua dívidas religiosamente, o que dificulta enormemente a importação de alimentos, da qual o país depende para satisfazer as necessidades de sua população. Ao mesmo tempo, as classes dominantes locais escondem alimentos e remédios, os vendem a preços exorbitantes ou ainda fazem contrabando para países vizinhos.
Trata-se de uma tática antiga. Quando Salvador Allende foi eleito no Chile, Nixon ordenou à CIA que fizesse “a economia chilena gritar”. Com o apoio da elite local, houve locautes, desabastecimento forçado, inflação e carestia. Na esteira, ocorreram os protestos das “panelas vazias” da classe média chilena, que precederam o golpe de Pinochet. Protestos depois fielmente copiados por nossa classe média envolvida na pressão pelo golpe contra Dilma Rousseff. Coincidência? Talvez não.
Muito embora os problemas econômicos e políticos da Venezuela sejam reais e sérios, é óbvio que essa ação de guerra econômica e de incitamento constante ao conflito político violento agrava substancialmente a situação interna daquele país.
Contudo, o advogado e historiador norte-americano, Alfred de Zayas, relator da ONU sobre Promoção da Ordem Internacional Democrática e Equitativa, concluiu, depois de uma visita à Venezuela, que o país não sofre uma crise humanitária, “diferente do que a grande imprensa vem tentando retratar nos últimos dias”. O relator ainda afirmou que o problema interno da Venezuela tem de ser resolvido de forma diversa. Segundo ele, a comunidade internacional deve trabalhar a solidariedade com a Venezuela para levantar as sanções impostas pelos Estados Unidos “porque são elas que pioram o desabastecimento de alimentos e medicamentos, é insuportável pensar que tendo uma crise de malária na Amazônia venezuelana, a Colômbia tenha bloqueado a venda de medicamentos e a Venezuela precise recorrer à Índia para obtê-los”.
Tal atitude de solidariedade e entendimento era, aliás, a posição que o Brasil vinha adotando face àquele conflito. De fato, o Brasil, ao longo dos governos do PT, deu apoio à busca de um entendimento político e pacífico na Venezuela, com o “Grupo de Amigos da Venezuela”, criado no âmbito da Unasul.
O problema é que a opinião do relator da ONU conta muito pouco, ou nada, para os interesses estratégicos dos EUA no subcontinente. O outro problema é que o Brasil, o principal país da América Latina, mudou radicalmente de posição e passou a apoiar fervorosamente as ações em prol da desestabilização violenta do regime chavista.
Com efeito, a “diplomacia” do golpe fez do isolamento da Venezuela a sua grande razão de ser. O Brasil foi o principal ator na exclusão da Venezuela do Mercosul, inclusive sob a invocação do Protocolo de Ushuaia, o que não deixa de ser irônico, partindo de um governo surgido de um golpe parlamentar. Saliente-se que o governo do golpe não poupou esforços para atingir esse objetivo do agrado dos EUA, chegando mesmo a ameaçar com retaliações comerciais o pequenino Uruguai, caso esse país não concordasse com a suspensão da Venezuela.
Essa atitude do Brasil, secundada pela Argentina de Macri, entre outros, de certa forma concedeu uma espécie de “carta branca” para que os EUA passassem a serem mais incisivos na desestabilização do regime chavista, inclusive com a possibilidade ações militares.
Do ponto de vista logístico, uma intervenção desse tipo, seja para a promoção de um golpe, seja para uma ação militar aberta, não acarretaria grandes dificuldades, já que os EUA têm muitas bases militares na Colômbia e no Caribe. A questão essencial é obter o aval de países da região para legitimá-la.
Aí é que entra a tema da “crise humanitária”. É necessário apresentar o quadro de um país ingovernável, regido por um ditador que pune a sua população, para bem justificar uma intervenção desse tipo. Nesse sentido, é tocante ver como certos veículos de comunicação brasileiros se empenham em cobrir o afluxo de venezuelanos em Roraima, sempre sob a ótica de que eles são vítimas de uma “cruel ditadura”, e não de uma guerra econômica contra o regime da América Latina que mais realizou eleições neste século e que acaba de marcar pleito para o dia 22 de abril do corrente.
É difícil de dizer, a priori, se e como o Brasil poderia participar de uma aventura irresponsável como essa. Não obstante, o governo do golpe já deu mostras de total comprometimento com tal “nobre causa”. Por outro lado, a realização de exercícios militares conjuntos entre Brasil, EUA, Peru e Colômbia em nosso território, algo aberrante na nossa tradição de defesa da Amazônia, sinaliza que, com o golpe, vieram à tona setores das forças armadas empenhados numa mudança da nossa estratégia de defesa, colocando-a sob a órbita de interesses geopolíticos dos EUA.
Mas é possível se afirmar, a priori, que uma intervenção desse tipo, ainda que parcial e velada, acarretaria consequências desastrosas para os interesses brasileiros. Obviamente, o conflito interno da Venezuela se agravaria, com danos irreparáveis à nossa relação bilateral com aquele país e ao processo de integração regional, que tanto nos beneficia.
Ademais, há o risco de que o conflito venezuelano acabe se internacionalizando, pois nem a China nem a Rússia veriam com bons olhos uma intervenção desse tipo. A América do Sul poderia acabar ficando numa situação parecida a regiões instáveis do globo, como a do Oriente Médio, por exemplo. Enfim, um desastre completo, como soe acontecer em todas as “intervenções humanitárias” que os EUA fazem. Os países acabam sendo destruídos e as populações que seriam “protegidas” sofrem muito mais. Só se salva o petróleo, que é desviado para o mercado mais voraz do planeta.
Não se espere, porém, racionalidade do governo dos EUA, ainda mais na gestão de Donald Trump.
Poder-se-ia esperar racionalidade do Brasil. Não mais. Mesmo com mesóclise. O governo do golpe rompeu com todos os parâmetros e paradigmas e dedica-se, com notável empenho, na destruição e na venda do Brasil.
De um governo como este, que não hesita em ser desumano com sua própria população, atendendo aos interesses do “mercado”, pode-se esperar apoio a “intervenções humanitárias” contra vizinhos, atendendo aos interesses de seus donos. Vira-latas podem ser raivosos.
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