A reinterpretação da prova que absolve Lula. Por Juarez Cirino dos Santos, criminalista
Juarez Cirino dos Santos, advogado criminalista, professor titular de Direito Penal da UFPR e presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal, ICPC, está fazendo uma série no site Justificando sobre o caso Lula. No artigo a seguir, ele tratou da reinterpretação, pela Lava Jato, da prova que absolve Lula
1. Um cenário judicial-burocrático de lutas políticas
A inserção do ex-Presidente Lula no macro esquema de corrupção da Petrobrás é o produto psíquico de uma hipótese obsessiva antiga, concebida e perseguida pelo Juiz Moro de modo compulsivo desde os primórdios da Operação Lava Jato, com o apoio do capital midiático-financeiro e dos partidos políticos da grande burguesia nacional e internacional – amigos íntimos do Juiz Moro como mostram fotografias e homenagens públicas -, todos interessados na destruição política da maior liderança das massas exploradas e oprimidas do povo brasileiro, impossível de ser batida em eleições democráticas regulares, como a experiência demonstrava e a expectativa das próximas eleições indicava.
Essa percepção das elites conservadoras da sociedade brasileira determinou a transferência do cenário das lutas políticas pelo Poder do Estado, das praças públicas de campanhas eleitorais normais para o espaço judicial-burocrático anormal da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde o exercício da titularidade pelo Juiz Moro garantia o emprego utilitarista do Poder Judiciário para alterar a correlação de forças na luta pelo poder político no Brasil. E assim, no cenário político-partidário, o Juiz Moro se transformou no principal cabo eleitoral das elites conservadoras e fascistas contra o projeto democrático das classes trabalhadoras e das massas populares da sociedade brasileira, com os resultados conhecidos.
2. O Juiz Moro e a proteção da prova pericial
2.1. Se a prova pericial da Acusação demonstra a inocência de Lula, porque a rasura representada pela sobreposição do número 141 (325, Evento 3), não constitui fraude praticada por Marisa Letícia, mas significa correção de erropela inserção prévia do número 174, com a finalidade óbvia de identificar o imóvel correto objeto do contrato, então resta observar a atitude do Juiz Moro na sentença, ainda sob a convicção de possuir a prova definitiva para condenar Lula e, por isso, muito preocupado em proteger a preciosa constatação pericial contra alegações de fraude da Defesa, afirmando (339) a certeza de que a rasura não foi efetuada após a apreensão, porque (a) o documento foi apreendido em dois lugares, a cópia carbono na residência de Lula e o original na BANCOOP, (b) a reprodução dos caracteres indicava que a rasura ocorreu quando original e cópias encontravam-se juntas e (c) a sobreposição do número 141 sobre o 171 implicaria redução e não ampliação da prova (340).
2.2. Agora, porém, as posições em relação à prova estão invertidas, e a Defesa extraprocessual pode dizer ao Juiz Moro e ao Tribunal que, realmente, “deve ser descartada qualquer hipótese de adulteração da prova após a apreensão”, como afirma a sentença (340), porque:
a) a ação de rasurar “não foi efetuada após a apreensão dos documentos”, tal como diz o Juiz Moro (339), mas no momento da elaboração do documentopara corrigir o número errado 174, fazendo a inserção do número correto 141 – logo, sem qualquer espécie de dolo, acrescentamos.
b) a reprodução dos caracteres indica que a rasura “só pode ter sido efetuada quando o original e as vias encontravam-se ainda juntas”, justamente como diz o Juiz Moro (339), nunca após a separação do original e respectivas cópias – portanto, a rasura aconteceu no momento da elaboração do documento, em que ocorreu a produção e a correção do erro.
c) a sobreposição do número 141 sobre o 174, não só “não traria qualquer incremento das provas da Acusação, pelo contrário”, como diz com convicção o Juiz Moro (340) -, mas aqui a concordância vira divergência, porque aquela sobreposição por inserção destruiria – como, de fato, destruiu! -, a prova da acusação.
Como se vê, o Juiz Moro errou na quantidade e no significado dos efeitos da sobreposição, mediante inserção (segundo a perícia oficial), do número 141sobre o 171: a locução “pelo contrário” do Juiz Moro (340), nega o incremento e afirma a redução das provas, mas o ilustre Juiz jamais imaginaria o efeito de destruição dessas provas, que a sobreposição daquele número produziria.
2.3. O inconsciente prega peças inesperadas em egos torturados por sentimentos de culpa: assim como o criminoso por sentimento de culpa da teoria psicanalítica pode praticar um crime quase perfeito, mas deixa pequenas falhas de execução, capazes de identificar o autor e determinar a punição, sentida como necessária para aliviar o sentimento de culpa que determinou a prática do crime – assim também o Juiz Moro produziu um processo penal quase perfeito, mas deixando falhas na construção do processo (em especial, na prova documental, a melhor e mais confiável prova, diz ele), capazes de identificar a farsa de um processo penal monstruoso contra Lula, contra o povo brasileiro, contra um projeto político emancipador das classes populares e contra o Estado Democrático de Direito no Brasil, igualmente capaz de produzir enorme sentimento de culpa inconsciente no psiquismo do Juiz, cuja vingança contra o ego temerário aparece em falhas processuaismaiores e menores, cuja descoberta pode determinar o castigo institucional da reforma da decisão, mas com a recompensa emocional de aliviar o sentimento de culpa – que, no caso do Juiz Moro, deve ser imenso.
2.4. Sem exagero, o Juiz Moro parece incapaz de pensar os fatos normais da vida, ou de ler o registro gráfico dos documentos da prova, ou de enxergar o óbvio com normal sensibilidade humana, porque só consegue enxergar fraudes, enganos, corrupção ou ilícitos nos acontecimentos humanos. Os neurônios punitivos do aparelho psíquico do ilustre Juiz parecem incapazes de captar os dados simples da vida real – esses dados simples que permitiram reestruturar a tese da Defesa nestes breves ensaios, mediante releitura de uma prova documental que sempre esteve no processo, disponível, visível, quase palpável – mas também escondida ou camuflada, como a fábula da nudez do Rei, que ninguém queria ver – até que alguém grita: o Rei está nu!
3. O que resta da prova documental: um amontoado de lixo?
3.1. Daqui por diante, movida por compulsão punitiva encarniçada e sob a égide de hipóteses obsessivas, a sentença do Juiz Moro é um mar de banalidades, de indícios que nada indiciam ou de provas que nada provam, numa sucessão de convicções pessoais sem lastro probatório, enredada num amontoado de detalhes irrelevantes, desconexos ou contraditórios, apresentados num discurso burocrático interminável, repetido e repetitivo, carente de argumentação lógica ou de fundamentação jurídica convincente, que definha numa miríade de incidentes insignificantes, monótonos e enfadonhos, com os quais não é possível perder tempo neste espaço – mas não se perde por esperar.
3.2. Apenas para uma pequena amostra, resumimos um resumo do Juiz Moro, em conclusões provisórias da sentença (418), sobre esses dados irrelevantes: a) a aquisição de direitos rasurada (?); b) a aquisição de direitos não assinada do ap. 174 (?); c) o pagamento de somente 57 prestações por Lula/Marisa; d) a transferência para OAS, em 2009, com opção de (i) novo contrato ou (ii) restituição do dinheiro, não exercida por Lula e Marisa, que requerem ação cível com o mesmo objeto; e) a venda do 131, mas não do 164-A, pela OAS, que um documento da empresa informa estar “reservado”; g) reportagem de O Globo sobre o tríplex de Lula e Marisa; h) as reformas da OAS no 164-A, não realizadas em outras unidades; i) mensagens eletrônicas de executivos/OAS para Lula e Marisa sobre o 164-A e as reformas no Atibaia e no tríplex; j) a desistência do Mar Cantábrico após a prisão de Léo Pinheiro, além de matérias de jornal sobre o tríplex.
3.3. Não é possível resistir a uma pequena ironia sobre os dois primeiros tópicos do resumo, objetos da análise destruidora do item 2, acima: se existe uma proposta de adesão rasurada no espaço da unidade habitacional (sobreposição do 141 ao 174), mas devidamente assinada por Marisa Letícia, e se existe uma proposta de adesão não assinada, mas com indicação clara da unidade habitacional 174, então a fusão das duas propostas, juntando os dados positivos e descartando os negativos, formaria um documento perfeito, produto de uma simbiose por osmose dos componentes, o ideal da prova sonhada pela Acusação – mas apenas possível na imaginação.
4. O interrogatório de Lula: um modelo de sinceridade e paciência
4.1. E chegamos ao interrogatório de Lula – o último ato de instrução criminal, com o Juiz Moro no papel preferido de inquisidor, exercido com religioso fervor -, à disposição na internet e em parte reproduzido na sentença, no qual salta aos olhos a paciência e a sinceridade de Lula, em contraste com a obsessão inquisitiva do Juiz Moro, num confronto de discursos do perseguidor e do perseguido, reproduzindo a secular batalha da liberdade do acusado contra a repressão judicial, que atingiu níveis de violência e autoritarismo jamais vistos na justiça criminal brasileira.
4.2. Apesar do material propício a análises psicológicas, ideológicas e políticas promissoras, devemos nos limitar a algumas observações rápidas, começando pelo documento rasurado e pelo formulário não assinado que constituem o núcleo da prova documental da sentença condenatória.
4.2.1. Sobre o que Marisa Letícia comprou ou não comprou, afirma Lula: Marisa comprou uma cota cooperativa da Bancoop, referente a um apartamento simples (422) e nunca teve a intenção de adquirir um tríplex (423).
4.2.2. Sobre o documento rasurado (sobreposição do 141 ao 174) Lula informou desconhecer o assunto – mas o Juiz Moro acrescenta o comentário esperado de que uma das vias rasuradas teria sido encontrada na residência de Lula (424), ainda sob a fantasia das interpretações bisonhas da prova, porque ignorava a reinterpretação da prova documental, aqui apresentada (item 2, acima).
4.2.3. Sobre o formulário não assinado (425) – o papelucho que o Juiz Moro insiste em chamar de documento -, Lula afirmou desconhecer o assunto, esclarecendo que não teria explicações sobre um documento não assinado:
“Não sei, talvez quem acusa saiba como é que foi parar lá, eu não, como é que tem um documento lá em casa, sem adesão, de 2004, quando a minha mulher comprou o apartamento em 2005″.
O Juiz Moro observa que a sugestão de Lula não foi reproduzida pela Defesa técnica (425), mas a Defesa poderia ter explorado esse argumento, como hipótese perfeitamente plausível, em face do furor punitivo contra Lula.
4.3. A obsessão punitiva do Juiz Moro em relação a Lula pode ser ilustrada de muitas maneiras, de modo especial pelo método de interrogatório utilizado, capaz de repetir por 13 (treze) vezes a mesma pergunta – obtendo por 13 (treze) vezes a mesma resposta -, tendo por objeto a mesma questão das reformas do apartamento 174, com pequenas variações de forma, ora induzindo, ora sugerindo, ora questionando, mas sempre com a intenção de extrair revelações comprometedoras, talvez uma casual confissão de Lula.
E fica a questão: para que serve a regra da lei processual (art. 212, CPP), que proíbe perguntas (a) que puderem induzir a resposta, (b) que não tiverem relação com a causa, ou (b) que importarem na repetição de outra já respondida? Como se vê, não há exagero em dizer que o Juiz Moro aplica regras pessoais ou idiossincráticas no processo penal.
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