O que a intolerância religiosa tem a ver com racismo?

CONSCIÊNCIA NEGRA

O que a intolerância religiosa tem a ver com racismo?

Brasil registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada quinze horas; maior parte de religiões de matriz africana

Brasil de Fato | Curitiba (PR)
Em 2016, mais de 750 casos foram registrado em todo o país / Júlia Rohden
O som do atabaque ecoa dentro da Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito misturado ao canto para Iansã e ao cheiro de flores. Dentro da igreja estão representantes de diversas religiões, de católicos a hare krishna, em um ato contra a intolerância religiosa. A cena é um registro da anual Festa do Rosário que aconteceu no último domingo (19) e marca uma das mais fortes manifestações contra o racismo no sul do Brasil. A celebração culmina com a lavagem das escadarias da igreja e com cortejo pelo centro histórico de Curitiba.
Candieiro, ativista há mais de 30 anos e coordenador de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba, é também o idealizador da manifestação que busca valorizar e dar visibilidade à história negra. “A Festa do Rosário rasga o véu da invisibilidade do povo negro em Curitiba”, conta. Ele critica a ideia de Curitiba como uma suposta capital europeia, ignorando a importância dos negros para a cidade. “Eu não sei que amnésia deu nos historiadores e nos escritores oficiais, mas o negro não aparece nesses registros”, ironiza.
Os representantes das diferentes religiões ressaltaram como cada crença prega o respeito e o amor ao próximo. Apesar disso, os dados de intolerância religiosa crescem no Brasil e as religiões de matriz africana são o principal alvo. De acordo com o Disque 100, canal do Ministério de Direitos Humanos, entre 2015 e junho de 2017 foram 1486 denúncias de agressão, desrespeito e destruição de locais religiosos – o que significa uma denúncia a cada 15 horas. Se em 2015 foram 556 registros, no ano seguinte o número chegou a 759. Apenas no primeiro semestre de 2017, foram 169 registros, sendo a maioria contra praticantes da umbanda, depois do candomblé e em terceiro lugar por religiões de matrizes africanas não especificadas no levantamento.
Andréa Guimarães, advogada e consultora da UNESCO, comenta que os dados ainda são subnotificados, o que ela atribui ao fato de muitas pessoas não conhecerem os canais de denúncia e, principalmente, ao sistema de justiça que classifica como falho. “Muitas vezes quando as pessoas denunciam intolerância religiosa em delegacias o caso não é investigado porque não é considerado importante, ou então é qualificado como uma briga de vizinhos, por exemplo”, conta. Ela também usa o termo “racismo religioso” para nomear um processo histórico de exclusão e negação das religiosidades de matriz africana. “Há muita discriminação institucional inclusive, porque muitas vezes o Estado entende que não são prática legítimas” pondera. Ela exemplifica os casos de terreiros de umbanda e candomblé multados pela Lei do Silêncio. “O Estado ignora que são instrumentos sagrados do culto e até levam os atabaques para a delegacia como se não fossem objetos merecedores de respeito”.
No Paraná, o Ministério Público investiga seis inquéritos relacionados à intolerância religiosa apenas neste ano. O levantamento foi feito pelo jornal Estado de S. Paulo e um dos casos envolve um babalorixá que teve seus filhos de santo agredidos por cerca de 30 pessoas com paus e pedras, apenas por se negar a retirar uma oferenda da esquina.  
Sueli Ribeiro, mãe de santo, relembra casos recentes de intolerância religiosa em Curitiba / Júlia Rohden
A mãe de santo Sueli Ribeiro lembra que há menos de um mês um terreiro em Curitiba foi invadido durante os trabalhos por assaltantes que humilharam os praticantes e os chamaram de “macumbeiros”. Candieiro relembra outro caso, que considera o mais emblemático de violência no Paraná, quando três mulheres praticantes do candomblé foram assassinadas em Londrina, em 2013, por um rapaz que disse ter cometido o crime em nome de deus.
Racismo
“Quando olho para a questão da intolerância religiosa, eu vejo principalmente o racismo. Nós temos intolerância religiosa porque nós vivemos em um país racista”, afirma Candieiro. Ele lembra que os negros participaram diretamente de todos os ciclos de riqueza do estado, não apenas como mão-de-obra como costumam a ser retratados, e ressalta nomes como os irmãos Rebouças, engenheiros responsáveis pela construção da estrada de ferro que liga Paranaguá a Curitiba, e João Pedro que foi o primeiro cartunista do Brasil no início do século XIX. “O racismo estrutural criou uma forma de contar a história do negro como inferior, caricaturado, submisso – do negro e da negra, porque é preciso lembrar que ainda mais prejudicada pelo racismo é a mulher negra”.
Ele ressalta que dificilmente alguém se reconhece racista. “A gente nega que é racista, mas o racismo existe. É contada a história do negro escravo, mas curiosamente ninguém lembra quem são os escravizadores. Então nós temos que ajudar a lembrar, a trazer um pouco da consciência dos privilégios que os brancos têm. E quando digo branco, não digo o branco pobre, o branco trabalhador, falo do branco da elite que está há séculos no poder”, afirma Candieiro. “E hoje, quando nós, negros, trazemos a nossa história tem gente que diz que estamos de ‘mimimi’, que queremos privilégios. Que tal a gente discutir os centenários privilégios brancos? Precisamos discutir o racismo, enfrentar esse monstro de frente, porque senão meus bisnetos ainda vão estar pagando por isso”, emenda.
Candieiro lembra que a primeira forma de organização social do povo negro em terras brasileiras foi através da religiosidade de matriz africana e que a preservação da religião é uma forma de resistência. “Eu agradeço aos terreiros de candomblé, eu agradeço aos terreiros de umbanda, que mantiveram viva a minha tradição, a minha cultura, o meu respeito, a minha visão de mundo. Se não fosse os terreiros de candomblé eu não teria nada disso, porque esse país, essa cidade, esse estado, foi pensado para ser branco em todos os sentidos, e nós não somos”.
Edição: Ednubia Ghisi

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