Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em questão de horas, de uma vez só, os direitos mínimos dos trabalhadores e seu maior líder trabalhista, Lula, foram condenados – simultaneamente, no Senado e na Vara Federal de Curitiba. Diante desse timing e precisão, jornalistas e intelectuais começam a expressar a perplexidade: cadê o povão? O Congresso não foi cercado e nem as praças ocupadas com massas sem arredar os pés. Massas manipuladas pela Globo? Índole apática do brasileiro? Por que as lutas monumentais e resistência em trincheiras até agora não ocorreram, limitando-se a algumas “batalhas de Itararé”? Talvez seja o momento de revisitar um dos textos políticos mais provocativos: “À Sombra das Maiorias Silenciosas” de Jean Baudrillard. Lá na França um gol de Rocheteau pelas eliminatórias da Copa do Mundo foi mais importante do que a extradição de um ativista político; como aqui Lula e seu pequeno exército de advogados solitários, sem o apoio das ruas, segue para a condenação em segunda instância. Para Baudrillard , não é uma questão de engano ou mistificação – há uma astúcia das massas que o Poder mais teme: não a “revolução”, mas seu silêncio e a indiferença. Um hiperconformismo no qual a política se afunda.
Diante do desenrolar tão infalível da narrativa política desde as “jornadas de junho” de 2013 e perante o tic-tac preciso como um relógio suíço das engrenagens da Guerra Híbrida e do Lawfare que chegou ao ápice de, numa taca só, enterrar a CLT e condenar o maior líder trabalhista brasileiro, só agora começam a surgir, aqui e ali, sinais da perplexidade.
“Cadê o povão?”, indaga o jornalista e diretor de Redação da Carta Capital, Mino Carta. “Fosse esse país aquele que haveria de ser, os brasileiros teriam paralisado o Brasil desde a noite do dia 11, sem arredar pé das ruas e praças até o momento”, indigna-se o jornalista.
Mais articulado pelo traquejo acadêmico, Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP), fala em “otimismo derrotista das esquerdas”. Enquanto a reação popular, social e sindical foram “ações pouco mais que nada” e as promessas de “lutas monumentais, resistência em trincheiras” ruíram em “pálidas batalhas de Itararé”, as esquerdas sofreriam de um “êxtase otimista da esquizofrenia”: certeza da vitória e nulidade da ação, invertendo o dístico Rolland-Gramsci – “otimismo da razão e pessimismo da vontade” - clique aqui.
Cadê o som e a fúria das massas?
Culpa-se diretamente uma suposta índole “apática” das massas brasileiras: “república de bananas”, “oposição sem ímpeto”, “massa que continua indiferente a tudo o que ocorre na vida do país”. Ou ainda fala-se em “má formação” e “má fundação” da nação brasileira como motivos principais de um povo que assiste passivo pela TV o desmanche e roubo do Estado brasileiro e dos direitos sociais.
Nesse momento em que intelectuais e jornalistas mais à esquerda expressam decepção e veem ruir a expectativa de ver “o som e a fúria” das massas cercando o Congresso e tomando as praças de todo o País, é oportuno revisitar um provocativo texto do pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007), À Sombra das Maiorias Silenciosas, o Fim do Social e o Surgimento das Massas de 1978 – no Brasil publicado em 1985 pela Brasiliense.
Baudrillard falava da indiferença dos franceses, grudados nas telas da TV comemorando o gol de Rocheteau que classificava a França para a Copa do Mundo, enquanto advogados corriam a noite para evitar a extradição de Klauss Croissant (advogado e ativista político alemão) da prisão de Santé. “Escandalosa indiferença”, clamava o Le Monde.
Algo parecido com a atualidade tal como descrita pelo professor Fornazieri: “Lula lutou sozinho ao lado do seu bravo e pequeno exército jurídico sem o respaldo das ruas ou mobilizações (...) Lula em sua solidão, caminhará com a sua equipe para uma condenação em segunda instância”.
Ou o lamento do líder dos Racionais MC’s, Mano Brown: “Eu vi a população virar as costas para a Dilma. Enquanto a favela faz silêncio, a mídia manipula”.
Entre a passividade e a espontaneidade selvagem
Acompanhando o raciocínio de Baudrillard, as representações imaginárias de noções como “povo” ou “massas”, das Ciências Sociais ao senso comum, flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem. Mas sempre são vistas como um estoque potencial de energia social à espera de ser liberada – hoje silenciosos, mas amanhã protagonistas da História.
Sempre as massas são figuradas dentro dos esquemas da produção, irradiação e de expansão. Mas elas respondem ao contrário como revelassem uma secreta astúcia: apenas absorvem e neutralizam todas as forças que se exercem sobre elas.
Para Baudrillard, o “problema” das massas não está no engano ou na mistificação – no futebol que aliena, por exemplo. A questão estaria em outra cena: na decadência da Política, do Poder, absorvidos pela astúcia das massas: o seu silêncio. Um silêncio decorrente da absorção do social (o Público, o espaço da Política etc.) pelo cotidiano, pela banalidade da vida, pela vida corrente com sua aporrinhações, contas para pagar, os filhos, a compra no mercado, o dia seguinte, a gestão da rotina da sobrevivência em que o desejável foi substituído pelo possível.
Klaus Croissant, Lula e o mesmo destino: a indiferença das massas |
Baudrillard descreve como a Política, a Publicidade e o Jornalismo sempre viveram a ilusão de que as massas são receptoras, objetos de manipulações, informações, do jogo eleitoral, da ideologias, discursos ou retóricas. Nem sujeitos ou objetos: qualquer mensagem voltada a elas imerge, volteia, é absorvida, revirada e revertida.
Absorção e neutralização
Por exemplo, nas regiões periféricas de São Paulo Doria Jr. foi interpretado como alguma coisa parecida com o Lula: um cara que veio de baixo e se fez na vida - clique aqui.
Alienação? Foram manipulados? Falta de informação? Ou está aí figurada a astúcia das massas silenciosas, um ardil universal, assim como os primitivos reciclavam as moedas ocidentais em sua circulação simbólica.
Alienação? Foram manipulados? Falta de informação? Ou está aí figurada a astúcia das massas silenciosas, um ardil universal, assim como os primitivos reciclavam as moedas ocidentais em sua circulação simbólica.
Um tipo de resistência que a própria sociologia americana (a “Mass Communication Research”) descobriu com a teoria do “Two Step-Flow” na recepção às mídias: ao invés de se alinharem a uma decodificação linear, uniforme e imposta, ao contrário disso o líderes de opinião decodificam a sua maneira e transpõe (segundo nível) para subgrupos que acabam por reciclar tudo a partir dos seus subcódigos.
Two Step-Flow: a sociologia americana descobre a "indiferença" das massas para o conteúdo das mídias |
É exatamente disso que o Poder e a Política têm medo: não da revolta, mas da absoluta indiferença e vazio – absorver energia e não refratar mais. Por isso, ao contrário do passado no qual quanto mais as massas eram passivas o Poder estava seguro, agora inverte-se as estratégias: da passividade o povo é chamado para a participação – para votar, para apoiar golpes, para fazer a revolução etc.
O “saco de maldades” contra as massas
A Direita, na sua encarnação atual sob a forma neoliberal, parece ter compreendido esse ardil das massas que ameaça a Política, enquanto as esquerdas ainda creem num estoque de energia social que precisa ser despertado e liberado.
Nessa discussão, como compreender, então, o “saco de maldades” da ortodoxia neoliberal para enterrar direitos sociais, submeter a sociedade inteira aos “ajustes fiscais”, ênfase em “superávit primário”, sacrificando a vida banal e cotidiana das massas silenciosas?
Para além da expansão da apropriação do excedente econômico, expansão da taxa mais-valia e aumento da desigualdade, há um fator simbólico visando a própria sobrevivência da Política: impedir que o “social” ou as massas em seu silêncio ou indiferença se esqueçam de vez da existência da Política, do Público e do Poder. Pela dor e sofrimento, obriga-las à força “participarem” do sistema político, pelo voto, pela recepção dos discursos e retórica de candidatos que prometem que o futuro será melhor... isto é, se forem feitos os “ajustes” e as “reformas”.
Algo parecido como em uma sequência do filme Matrix (1999): mantido prisioneiro, Neo (Keanu Reeves) ouve do Agente Smith (Hugo Weaving) um breve relato da história das várias versões da Matrix codificadas pelas máquinas. Na primeira versão, criou-se uma Utopia, um mundo idílico no qual todas as fantasias e desejos humanos eram realizados. Fracasso: os habitantes caíram na indiferença e letargia, sem render a energia necessária para as máquinas.
Optou-se pela versão mais “realista” com todas as mazelas, desigualdades e sofrimentos. Assim, obrigava os humanos a sair da apatia e gerar a energia vital para o sistema de dominação das máquinas.
Hiperconformismo
Como sempre, a Direita sob suas diversas formas (do fascismo ao neoliberalismo), conseguiu compreender cinicamente a ameaça que as massas representam à Política e ao Poder. Paradoxalmente, não pela revolta, mas pelo oposto – a indiferença, o silêncio.
Enquanto os intelectuais e a elite bem pensante à esquerda não saírem da caixa dos sistemas de significação iluministas (liberação, representação, alienação etc.), não compreenderão essa astúcia. De como a inércia das massas é, ironicamente, a maior ameaça ao sistema capitalista.
Por exemplo, certa vez um amigo trotskista nos tempos de faculdade falou para mim: “se Marx dizia que o Capitalismo produzia suas próprias contradições que levarão ao seu fim, então devemos consumir cada vez mais para acelerar essas contradições.” Na época pensei “que pequeno burguês!”. Mas à luz do pensamento baudrillardiano passa a ter sentido como tática de levar o consumo ao paroxismo, isto é, ao aprofundamento e excesso.
Consumir até o limite da irresponsabilidade financeira pessoal. Essa inércia das massas (se é para consumir, então vou até o fim!) leva os caminhos do social que lhes foram traçados a ultrapassar toda lógica e limites. Ameaçando derrubar todo o edifício. Hiperconformismo destruidor.
Não é à toa que, alarmado, os guardiões da banca financeira gritam pelo “desaquecimento econômico”, renegociam dívidas em descontos que praticamente cancelam o valor original da dívida, tentam trazer as massas de volta à reponsabilidade moral pelo dinheiro. Até a inércia do hiperconformismo ameaçar novamente o sistema com deflação e depressão econômica.
Quem vencerá? A simulação exercida pelo Poder sobre as massas? Ou a simulação inversa dirigida pelas massas ao Poder e ao sistema político que nelas se afunda?
É essa zona cinza, transpolítica, que as esquerdas deveriam descobrir e ficarem mais atentas.
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