“Fomos ingênuos em relação aos meios de comunicação. São antidemocráticos!"
“A pauta política dominante é machista, fundamentalista e tende à regressão”
“Não percebi a aversão das classes enriquecidas a pagar qualquer parte da crise”
A financeirização da economia envolve a tal ponto o capitalismo brasileiro, na atualidade, que a queda da taxa de juros deixou de ser interessante até mesmo para o setor produtivo da burguesia nativa. “Todas as grandes empresas brasileiras têm uma variante bancária chamada tesouraria, na qual a parte financeira é, progressivamente, mais significativa que a parte produtiva. A financeirização faz isso em qualquer país. Mas no Brasil, além disso, tem um ganho maior, que é derivado de serem sócios da rolagem da dívida pública”. A avaliação é da presidenta Dilma Rousseff, em entrevista exclusiva concedida a Esquerda Petista em 13 de fevereiro último, no seu modesto apartamento em Porto Alegre.
Dilma admitiu a Marcos Piccin e Valter Pomar, de EP, erros cometidos nos governos petistas, o seu e o de Lula, provocados por uma avaliação errônea da disposição da burguesia de se engajar no projeto desenvolvimentista: “Eu não percebi qual era o nível de aversão deles a pagar qualquer parte da crise. E nunca percebi que achavam correto arrebentar o Estado em relação a qualquer política de conteúdo nacional mínima. Achei que eles tinham interesse efetivo num projeto nacional de desenvolvimento”.
Na mesma linha, reconhece que houve ingenuidade na relação com a mídia oligopólica: “Eles não têm nem princípios democráticos, nem republicanos”.
Na entrevista, Dilma revela domínio da geopolítica quando, a pedido dos entrevistadores, discorreu sobre as questões econômicas e políticas em jogo na América Latina e no mundo: o avanço da financeirização e suas consequências perversas, a persistência do neoliberalismo, o crescimento da extrema-direita, a estratégia do imperialismo norte-americano antes e depois de Donald Trump, o crescimento da China, o renascimento da Rússia, a importância dos BRICS. Pontua a explanação com o relato de episódios diplomáticos marcantes, protagonizados por alguns dos principais mandatários do planeta.
Enviado pelo presidente Barack Obama para amenizar o estrago provocado nas relações com o Brasil pelas revelações de Edward Snowden (de que os Estados Unidos espionaram Dilma e a Petrobras), o ex-presidente Bill Clinton confidenciou a Dilma, referindo-se aos órgãos de espionagem: “Aqueles caras estão doidos?” (Those guys are crazy?).
Vladimir Putin, por sua vez, explicou à presidenta como agiu para contornar a difícil situação criada pelas sanções econômicas norte-americanas e europeias, adotadas como retaliação à anexação da
Crimeia: buscou um acordo com a China, superando “algumas diferenças históricas”, de modo a obter a substituição da importação de certos equipamentos e fornecimentos que antes vinham da
Alemanha. E que, depois de mais alguns anos problemáticos, entraria em campo novamente. “A palavra que ele usou: ‘Vou entrar no tabuleiro através da Síria’”.
Na entrevista, mesmo fortemente questionada por EP, Dilma defende seu controverso projeto de “país de classe média”. Outro ponto forte da conversa, ao final, são as considerações sobre seu estado de ânimo desde que se iniciou o processo de impeachment. “Pessoalmente, é uma das experiências mais amargas que eu passei na vida”, diz, ao mesmo tempo em que adverte: “Pode ser uma falha minha, mas não consigo ver como uma derrota”. Isso porque ela é profundamente otimista: “Tenho a certeza de que nós não perdemos a democracia no Brasil. Nós estamos no entreato. Houve este ato que acabou mal com o impeachment. Pode ser que o ato de 2018 acabe bem”.
(Edição de Pedro E. R. Pomar)
EP. Presidenta, começamos perguntando sua opinião sobre o “estado do mundo”. Do ponto de vista do Brasil, do Estado brasileiro, do povo brasileiro, quais são, na sua opinião, as principais características do cenário internacional e o que devemos fazer a respeito? Especificamente, que futuro você enxerga para os BRICS neste momento em que Trump começa a governar os EUA?
Dilma: Eu não acho que o Trump marca uma ruptura, o Trump é uma continuidade. Fala-se que aqui é uma república de bananas, mas está claro que lá é pior. Tem algumas características que são compartilhadas entre Estados Unidos, Brasil, Europa e qualquer região do mundo. Se não são compartilhadas, serão. Porque acredito que fazem parte de uma tendência internacional. Se a gente puder falar de um aprofundamento da etapa do capitalismo que estamos vivendo, a primeira constatação é que as finanças assumiram um volume de poder nunca dantes visto. Muitos chamam esse período de neoliberalismo por conta do Consenso de Washington. A característica marcante, que é o processo de financeirização, não ficou clara até recentemente do que se tratava. Ficou clara a partir da crise de 2008-2009, pelo processo de bolha que a queda do Lehman Brothers evidenciou, a ponto de o G20 colocar como pauta a questão da regulação do sistema financeiro internacional como um dos instrumentos para fazer face à crise que estava em curso. Mas o fato de eles terem assumido uma quantidade desproporcional de poderes econômicos se deve muito mais ao papel que ocupam na estruturação da atividade econômica e política. Na estruturação da atividade econômica é a priorização do curto prazo e a rentabilidade trimestral que faz com que duas coisas aconteçam: a valorização das ações e a valorização das empresas têm mais a ver com a atividade financeira do que com a atividade econômica produtiva. Isso vale não só para as empresas industriais como para empresas digitais, para empresas de serviços e para as maiores empresas do mundo. Aqui no Brasil, com outras características agravantes.
Mas esse é um processo que se caracteriza pelo fato de que há uma prioridade ao endividamento. Por que o endividamento ocupa um papel central? E para que é o endividamento? O endividamento não é para financiar uma indústria automobilística, nem uma empresa digital ou um projeto de infraestrutura. O endividamento é para viabilizar a compra e recompra de ações. Para valorizar as ações e assim poder distribuir um lucro muito expressivo para os acionistas e para os CEOs. A dificuldade para a recuperação da economia do pós-crise de 2008 e 2009, que ainda se arrasta e é a mais longa desde o pós-guerra, encontra resposta no processo de financeirização. Nunca houve um processo de recuperação da economia tão lento e tão frágil. Outra explicação é que há robustas evidências de uma redução do nível de investimento em ciência e tecnologia, considerando a empresa antes e depois de ela entrar no mercado de capitais. Há um estudo sobre Apple, que tem um caixa bastante volumoso e que toma emprestado dinheiro para comprar suas próprias ações, porque ao comprar suas próprias ações as ações se valorizam e se distribui mais lucro para os acionistas. Então, há um mecanismo de priorização da atividade financeira, em detrimento das demais. Rana Foroohar, editora da revista Times, diz que dos 100% de recursos financeiros nos Estados Unidos, 15% vão para atividades produtivas de infraestrutura ou comércio e serviços, enquanto os outros 85% vão para a compra e venda de ações. Uma das consequências mais sérias disso é que há toda uma estratégia para que haja regulação do sistema financeiro.
“O que é importante nessa discussão da financeirização é que eles não querem ser regulados. É um processo de captura de funcionários públicos, governos, agências reguladoras, por parte das empresas financeiras”
Por exemplo, o G20 foi um grupo basicamente econômico, de avaliação econômica, tanto é que se evitava discussões políticas ou estratégicas. Não se discutiam guerras, por exemplo. O G20 era eminentemente contra a crise financeira. O que é importante nessa discussão da financeirização é que eles não querem ser regulados. É um processo de captura de funcionários públicos, governos, agências reguladoras, por parte das empresas financeiras. É interessante que, após a crise, a regulação foi feita em parte apenas. Os chamados mercados off-shore foram a grande rede de ocultação e de diminuição de pagamento de impostos. A ideologia por trás dessa financeirização é a mesma do neoliberalismo: privatiza, reduz o Estado e diminui completamente o gasto social. Não é o nosso Estado, é o Estado de Bem-Estar social que está em xeque, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. E aí, vem uma consciência que surge pós-crise também… O que acontece, qual o efeito disso? Um aumento extraordinário da desigualdade, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Em todo o mundo cai a participação dos impostos no bolo econômico. Significa que há uma interrupção dos mecanismos que antes levaram à construção do Estado de Bem-Estar Social, que foi, no pós-guerra, a impositividade, principalmente dos impostos sobre a renda e a riqueza. Riquezas no sentido de taxar o patrimônio, terras e ações. Renda no sentido do salário, do rendimento, do lucro. Ao longo dos anos a taxação foi sendo menor sobre a riqueza e sobre o lucro e se concentrou mais no rendimento do trabalho propriamente dito. Em todo o mundo há esse decréscimo. As estatísticas são assustadoras tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, na França, na Espanha.
A América Latina fez uma distribuição de renda, mas não fez uma distribuição de riqueza integral. Quem mais fez distribuição de riqueza foi o Brasil por causa do programa Minha Casa, Minha Vida, considerando que casa é um dos elementos fundamentais da repartição de riqueza. Nos Estados Unidos e na Europa, esse processo assumiu a forma da bolha imobiliária, o que é muito grave. Porque era a capacidade que você tinha de apresentar sua casa como riqueza, de tomar dinheiro e investir ou consumir, o que levou a uma perda monumental da riqueza para as classes média e baixa. Isso também acontece nas crises, mas o que eu quero dizer é que esta é a característica principal desse processo e ele leva a uma brutal desigualdade. Brutal! Não é uma pequena desigualdade. Não vamos nos esquecer de que nós estivemos contra a corrente. Nós, quem? América Latina esteve contra a corrente. Desde o Chávez, desde a Venezuela até a Argentina, passando por nós e todos os demais. O Chile, um pouco menos, mas se você for olhar, também. Todos tiveram um processo de repartição de renda. Todos nós. O aumento da desigualdade no mundo, principalmente nos [países] desenvolvidos, acarreta um problema, que está amadurecendo no pós-crise de 2008, porque vamos lembrar que houve anteriormente um processo de endividamento das famílias, das classes médias e baixas no mundo, permitido pela financeirização do consumo, endividamento que embaça um pouco o aumento da desigualdade. Embaça, mas depois da crise fica claríssimo que a desigualdade se intensifica. E aí amplia, também, a invasão sobre a democracia.
Se pensar direitinho a questão do Estado de Exceção… Ainda não está muito conceituado qual é o produto do aumento da desigualdade sobre a instância política. Como é que funciona a ampliação das medidas de exceção num quadro de Estado Democrático de Direito? Quando, no governo Bush, começa o avanço das políticas antiterroristas, as políticas antiterroristas não se atêm aos terroristas. As políticas antiterroristas implicam um grau bastante elevado de invasão sobre qualquer americano, principalmente do que eles chamavam de acesso às informações, eles fazem a tomada de informações, têm dados brutos, os meta-dados. Teve uma época em que eles não conseguiam selecionar os meta-dados. Eles se embaralhavam com os meta-dados. Mas eles desenvolveram uma indústria da inteligência, como antes teve a indústria da tecnologia desenvolvida sob o Pentágono. A mesma coisa eles estão fazendo na área da inteligência, passaram a ter um computador (Big Dates) que tem uma capacidade de processamento brutal. E não pararam por aí. Eles avançaram na construção dos softwares. O Snowden é produto do fato de essa estrutura ter sido construída em cima de uma parte terceirizada. Não é o Estado norte-americano que faz, ele subcontrata empresas e na subcontratação eles não controlam. Ele era um subcontratado.
Clinton, em 2012, durante a Assembleia Geral da ONU, me disse que eles não sabiam o que o Snowden tinha, o que ele tinha pegado. E ele disse assim para mim: “Those guys are crazy?”. Quem são os those guys? Ele me disse que tinha 17 mil empresas em torno do sistema de informação. E que o controle que eles tinham, de quem pegava o quê, era zero! E que aí, como tinha ficado sério, ia começar a ter algum controle. Talvez o Snowden estivesse numa posição em que ele conseguia pegar mais do que meta-dados. Porque não é meta-dados que eles têm hoje. Eles têm um nível de trabalho de softwares extremamente sofisticado. Não é só filtragem. Eles trabalham com as informações. Hoje, não é mais possível o que aconteceu perto do 11 de setembro, em que eles tinham tantas informações em bruto que não tinham como filtrar o que era importante para eles ou não. Hoje eles têm, não só por causa dos Big Dates, mas eles têm porque se associaram. É um grupo de países, não é só os Estados Unidos, e Israel tem um papel crucial. Eles criaram em torno do Mossad uma indústria de inteligência. E eu tenho absoluta certeza que o Patriot Act é uma violenta corrosão por dentro da democracia. A forma pela qual não é preciso passar pelo juiz ou tem juiz especial para autorizar, por exemplo, a tortura, a prisão sem formação de culpa. É aquilo que o Agamben chama do homem nu. Não há nada mais do que o prisioneiro nu em Guantánamo. Nada mais. O requinte máximo é tornar o homem nu de qualquer traço civilizacional. Do ponto de vista da democracia, é um ataque monstruoso. Então, essa tríade — financeirização, desigualdade e democracia — é uma característica da nossa época.
Para onde vamos? Estamos numa situação extremamente complicada, porque o Estado de Bem-Estar Social deixou de cumprir seu papel, pois foi sendo corroído. E foi corroído pela teoria de que pagar imposto é um absurdo. Aqui no Brasil, nós não conseguimos defender que é necessário pagar imposto. Não temos clareza acerca disto. Nós entendemos que o movimento principal do neoliberalismo é a privatização, nós não percebemos que o movimento principal é de redução de impostos. Não é privatização que é o primeiro movimento do neoliberalismo. Esse é o segundo. O primeiro movimento é a redução impositiva. O segundo é privatização. E o terceiro é a desregulamentação de tudo, em especial as relações de trabalho. Ferra com o sindicato. Desaparece com o sindicato.
Não foi só um processo feito pela [Margareth] Thatcher, ou nos Estados Unidos. É generalizada a questão da redução e do desaparecimento das organizações sindicais. E aí, entramos na seguinte questão: o Estado de Bem-Estar Social e as políticas desse tipo tiveram um papel de tornar a política relevante. Por quê? Porque de uma forma ou de outra, eles tinham uma interlocução com a sociedade. Alguns podem falar que até a forma como você legitimava essa organização econômica, social e política era através do Estado de Bem-Estar. Mas, quando você corrói ele, quando mesmo tendo um estoque já distribuído, você acaba com o fluxo, o que acontece com a política? Ela passa a ser extremamente questionada como irrelevante. As pessoas, ao perderem o poder de interferir no Estado, têm um certo desencantamento com a política. E abre-se o espaço para que haja outro tipo de solução, que não o tradicional. Porque os partidos tradicionais em todos os lugares têm baixa representatividade, estão sendo questionados. Por que aparece outro tipo de proposta? Uma das explicações para o avanço da extrema-direita é essa. Ela ocupa melhor esse espaço vago, apolitizado. Ela ocupa melhor, com respostas mais simples, mais triviais.
No Brexit eles diziam que o problema eram os imigrantes e que eles é que deviam ser responsabilizados pela decadência de certas regiões do Reino Unido, e não o processo de financeirização que leva tudo para Londres. Você pega a periferia que antes era toda industrializada, aí os caras não têm mais perspectiva, não têm mais esperança, não têm mais nada. Em quem eles põem a culpa? E nos Estados Unidos, a culpa é de quem? Para os conservadores a culpa é dos latinos e dos acordos de livre-comércio. Até então, era alto negócio. De repente, o Trans -Pacific [Partnership, ou TPP] não serve, e não serve também o Transatlântico [TAFTA]. Cá entre nós, é por causa dos acordos de livre comércio que há uma redução dos salários? Há uma precarização do trabalho e uma ampliação da desigualdade.
“Há uma tendência à regressão da pauta política. A pauta política dominante é machista, antifeminista, anti-homossexual, ela é fundamentalista neste sentido. Combina o conservadorismo com a regressão dos direitos sociais e econômicos”
As novas pautas — mulheres, homossexuais, transexuais, lei de aborto, meio ambiente — todas elas estão em questão, em maior ou menor grau. A de mulheres, no caso dos Estados Unidos, está claro que está em questão. Na Rússia, a violência doméstica não é sancionada. Todas essas pautas regredirão. Há uma tendência à regressão da pauta política. Para mim, a pauta política dominante é machista, antifeminista, anti-homossexual, é fundamentalista neste sentido. Ela combina o conservadorismo com a regressão dos direitos sociais e econômicos.
Você tinha feito a ligação entre a dificuldade de regular o sistema financeiro, dificuldade encontrada mesmo dentro do Fórum Econômico Mundial, com a política e a ocupação desse espaço por ideias as mais reacionárias.
No G20 você tinha até algumas regulações, só que nenhuma suficientemente forte para fazer frente, por exemplo, aos paraísos fiscais, que são uma rede internacional. Essa rede tem um objetivo, não é “só” lavar dinheiro. É também impedir que o pagamento de impostos incida de maneira significativa sobre os ganhos que eles têm em todos os países do mundo. Então, a primeira função dos paraísos fiscais não é só lavar dinheiro de corrupção, é não pagar imposto. Aí entra o tráfico de drogas, o crime organizado, a corrupção. Depois da crise eles tentaram segurar um pouco. De qualquer jeito, não é significativo. Não pagar imposto é uma ameaça a quem ganha menos em qualquer país do mundo. E só tem um jeito de distribuir renda: é arrecadar de algum lado. Quem perde quando não tem imposto são os trabalhadores, os vulneráveis, porque não têm acesso à educação. Porque você não dá igualdade de acesso à educação, fundamentalmente. Quais os principais fatores de desigualdade? Onde é que segrega? Na qualidade da educação! E como segrega! Você vê nos Estados Unidos: tem cinco ou seis universidades onde só entra gente rica!
Como é que isso se transforma em disputa entre os Estados? A chegada do Trump corresponde ao acirramento da tensão internacional, entre os Estados. Para onde vai isso? Como é que isso é traduzido na disputa geopolítica entre os Estados?
Depois da queda do Muro de Berlim, a suposição era que a Rússia tinha acabado. A Rússia como polo de poder não era relevante. E aí começa a China a emergir. A predominância da teoria do polo único dos Estados Unidos tem seu auge até o momento deste boom, que leva a China junto. Até ali, você tem essa predominância. A submissão do Brasil aos Estados Unidos era clara. Lembramos também do Menem, aquela disputa de quem era o mais bem-comportado. E o que acontecia enquanto isso? Junto com a queda do Muro de Berlim, você tem o deslocamento do polo para a Ásia. A China começando a ter um crescimento fantástico, o que não acontece de um dia para o outro. Acontece desde Deng Xiao Ping, que propôs para o exército chinês: “Vamos aprovar a liberalização do sul da China, eu divido com vocês os recursos que nós vamos acumular e vocês vão ser transformados no maior exército do mundo”. O exército era um elemento fundamental, porque o exército russo assistiu quietinho ao desmantelamento da União Soviética. Quando a gente fala da queda do Muro de Berlim, estamos falando disso. O império russo demoliu-se, é uma perda fantástica do ponto de vista geopolítico. Aí, os chineses olham e dizem: “Há que fortalecer o exército e vamos parar com essa frescura de ficar fazendo liberalização política, aliás, a liberalização econômica e a liberalização política correndo juntas”. Tanto é que o exército chinês tem um papel fundamental pós-Madame Mao. Após aquele processo, é a única coisa que restou intacta. O partido está arrebentado, o Estado idem. Então, remonta com quem? E ele remontou. Além disso, essa emergência tem a ver também com os chamados Tigres Asiáticos. Antes da China aparecer, aparecem o Japão e logo em seguida os Tigres. Tanto é que aquela crise de 1999 começa na Tailândia e se espalha, chegando até a Coreia do Sul. Então, você tem o surgimento da China como grande ator. Quando os Estados Unidos estão olhando para a importância do Japão, a China já está avançando. O processo da Rússia é o mais difícil de todos, pois há um desmantelamento do Estado russo. Quando o Putin vai reconstruir, ele reconstrói em cima dos oligarcas — e acaba com os oligarcas.
E como estão os BRICS agora?
Estão a todo vapor. Vão passar por cima de nós [ri]. Você está lidando com gente pragmática. Jamais vão dar a mão para o Temer. O Putin nunca vai dar a mão para o Temer, o Xi Jinping não vai dar a mão para o Temer, nenhum deles. Vão manter as relações, mas não passa por aqui, entendeu? Eles não darão a menor importância [para o governo Temer]. E não piscam, também. Não vão ficar pensando muito nisso, não.
E você vê no horizonte um conflito mais violento, em larga escala?
Obama mudou a política americana. Obama saiu do conflito, ao contrário do Bush. Bush foi um governo dominantemente com conflito no Oriente Médio. Foi Afeganistão e Iraque. No segundo ano do Obama fica claro que os Estados Unidos acharam o Shale Gaz e o Shale Oil e que eles vão produzir mais significativamente e não estão mais tão dependentes do petróleo do Oriente Médio. Obama, então, muda a estratégia e passa a fazer contenção da Ásia. Se você lembrar bem, por que os chineses têm essa bronca feroz com o Obama? Porque a política do Obama inteira é de contenção. Tanto o TPP que ele estrutura é para contenção da China, quanto botar sei lá que número de frotas no Mar da China… Eu não acredito que Trump vai repetir a política. Ele já começou a mudar. Então, não sei qual política Trump vai fazer com a China. Ele deixou claro que deixará a Rússia quieta. Se você pegar um daqueles Foreign Affairs, que é uma publicação ultraconservadora, eles dizem que havia um exagero por parte do governo americano, quando se tratava da questão de conter a Rússia. Primeiro, através da OTAN, e segundo, achando que chegar e ocupar as margens não seria conflituoso. Eles chegam a dizer, por exemplo, que havia um certo desrespeito e uma insensibilidade em relação ao papel que a Rússia tinha e que ainda estava expresso em seu potencial armamentista. Que a questão da Ucrânia não poderia ser tratada daquele jeito. A Criméia está com tudo quanto é de grandes estruturas nucleares, militares e do que há de sofisticado na produção da indústria espacial russa, era uma temeridade.
“Merkel e Putin já foram ‘melhores amigos’. Pude ver os dois conversando em alemão… Putin falou para mim que fez um acordo com a China, faria uma política de substituição de importações, ficaria ruim durante cinco anos — e depois botaria a cabeça de fora. Aí vem a outra parte. A palavra que ele usou: ‘Vou entrar no tabuleiro através da Síria’”
Tinha uma análise que dizia o seguinte: que esta era uma tentativa de cortar para todo o sempre os vínculos que havia entre a Rússia e a Alemanha. As relações eram extremamente estreitas. Tanto é que a Merkel leva um tempão, até que se radicaliza. Começa a falar que o Putin é eslavófilo, contra as mulheres, de direita e fascista. A Merkel acha isso do Putin, sendo que os dois já foram melhores amigos. Pude ver os dois conversando em alemão… O Putin foi formado por um agente alemão da KGB. Mas o que eu acho disso? Seguinte: o que o Putin fez? Ele falou para mim que fez, simplesmente, o seguinte: um acordo com a China, lembrando que eles tinham algumas diferenças históricas. Ele não conseguia ficar sem certos equipamentos e fornecimentos da Alemanha. Ele construiu com a China e depois disse para mim que ia fazer uma política de substituição de importações, que ficaria ruim durante cinco anos e que depois botaria a cabeça de fora. Aí vem a outra parte, que é a estratégia dele na Síria. Então, até lá, ele se segurava na Síria. E que ele entraria outra vez no tabuleiro… A palavra que ele usou: “Vou entrar no tabuleiro através da Síria”.
Coisa que ele fez.
Brilhantemente. O que vai acontecer, hoje, geopoliticamente, no curto prazo, não sei. No médio prazo, tendo a achar que o multilateralismo é inexorável. Que não haverá mais no mundo uma força suficiente para construir um único polo. Daí a inteligência da estratégia que nós tivemos, o Lula e o meu governo, no sentido dos BRICS. Porque os BRICS até um determinado momento eram só um grupo. A partir do momento em que a gente faz o Banco dos BRICS e o acordo contingente de reservas… O BRICS é importante porque ele não é um polo regional. É importante ter os polos regionais: uma das maiores e mais importantes coisas que nós fizemos, que até acho que vai regredir, mas nunca vai voltar a ser o que era, foi construir a consciência de América Latina, América Central e Caribe, mesmo com todas as crises no Mercosul e a dificuldade imensa que o Mercosul tinha em várias coisas. O Unasul já foi com uma situação melhor. Com a Celac, acho que houve uma efetiva cooperação entre nós, que mostra que esta cooperação era possível e que nós tivemos uma competência em não sermos imperialistas — e tínhamos tudo para sermos imperialistas: a maior economia, a maior força, isso e aquilo, para onde a gente inclina, inclina todo mundo — e termos sido capazes de construir o consenso. Construir o consenso quando você tem o brilho do Lula e do outro lado o Uribe, o Chávez e o resto todo, não era fácil. Quando brigam o [Juan Manuel] Santos e o [Nicolás] Maduro, seu papel é chegar e falar: “Assim não dá, Maduro, pô! Para com isso”. Então, esse papel eles [governo Temer] não cumprem mais. Eles não têm legitimidade para cumprir. Não sei o que vai acontecer na América Latina, pois a onda para trás está muito forte. Sobra, até agora, o Evo. Não sei se o Evo devia ser candidato novamente, ou procurar um sucessor. A terceira vez é complicado.
Você vê alguma chance de voltar um quadro político melhor?
Pode vir por ondas. Eu fico muito preocupada com a Argentina. O que acho é que no Brasil vai ser muito esclarecedor 2018. Nós vamos ter que debater o que aconteceu no Brasil para o bem, para o mal, não interessa quem ganhe, mas haverá um processo político, de dimensão nacional, em que se discutirá. Vai ser uma discussão, dura, crítica, mas vai ter. Por isso a coisa mais grave é não ter eleição em 2018. Na Argentina, fico muito preocupada com a seguinte coisa: o governo do Macri é muito mal visto, mas o Macri é muito bem visto. E aí, eles podem ter uma longevidade. É muito importante que Argentina e Brasil caminhem juntos em direção a um retorno. A presença do Macri é muito ruim como a alternativa mais neoliberal que a Argentina já teve. Mais do que o Menem. O Menem, apesar de tudo, negociava com o lado social. O Macri, não. O Brasil tem uma etapa diferenciada, porque nós chegamos à financeirização sem destruir o Estado popular. O Estado popular ficou. O Estado getulista. Ficou, onde? Petrobrás, três bancos, Eletrobrás com tudo que tem de energia elétrica. Então, rigorosamente falando, o Estado brasileiro tem uma mão financeira forte, financeiramente forte. Os três maiores bancos: o maior banco imobiliário do Brasil, a Caixa; o maior banco comercial [Banco do Brasil], compete com qualquer um, às vezes é mais forte que o Itaú; o BNDES, que é o único banco de financiamento a longo prazo. Aí, você tem a Petrobrás e a Eletrobrás. Então, você tem uma estrutura de Estado que não sobrou para país nenhum. Tirante Rússia e China, ninguém tem isso, muito menos a Índia. Você tem uma estrutura de Estado capaz de operar política social. Não é fácil nem trivial fazer o Minha Casa, Minha Vida, nem o Bolsa Família. E um Estado que influencia na atividade econômica.
Se você perguntar aos golpistas qual é o projeto de longo prazo deles, para mim é aquilo que foi interrompido pelo Lula em 2003. Eles fizeram uma parte daquilo. Privatizar distribuidora, privatizar a Vale. Talvez a mais grave das privatizações deles. Não privatizaram terra, porque nós paramos com isso. Se tem alguma coisa mais importante que fizemos em matéria fundiária, foi proibir a venda de terras. A venda de terras no Brasil é a coisa mais importante para eles, porque implica um nível de riqueza inimaginável. Estratégica. Porque é a força do Brasil. É o imenso potencial alimentar e mineral que nós somos. Tem riqueza que nós nem sabemos, mas eles sabem. Então, tinha de interromper esse processo, em termos de programa macro deles. Tem um programa mini: “Vamos sair da crise, sim, e vamos botar o povo para pagar a crise”. O pato amarelo tem uma proposta mais clara: não quero pagar absolutamente nada de imposto. Não é só CPMF. É juros sobre capital, a própria tributação. Por isso é que tem que ter um nível de discussão mais diferenciado em relação ao que já fizemos. A esquerda não discute imposto. No mundo, ela não discute. Não é só aqui, não.
Isso posto, que cenário tem para o Brasil nos próximos anos? Realisticamente.
Submissão aos Estados Unidos é o modelo deles. É tudo que não pode ter. A hora que eles começaram a ter aquela atitude que tiveram com os Estados Unidos no início, eles perderam completamente a credibilidade. Nós nunca tivemos uma atitude de subserviência. Nunca tivemos uma atitude de nos diminuir. Acontece uma coisa chamada desconfiança. A desconfiança política é maior que a desconfiança econômica.
Para que haja um futuro para o Brasil, precisa da eleição de 2018. Só com a eleição de 2018 e com uma postura respeitosa em relação a si mesmo é que o Brasil vai ter condições de retomar várias relações. Enquanto isso, não será considerado. É porque ele [Temer] é ilegítimo. Eles leem jornal, eles sabem quem ele é. Então, acho que é possível, sim. O Brasil retomará. Você teve, por exemplo, uma relação com os chineses que durou 14 anos. Eles sabem quem nós somos. Sabem como é que foi a briga do G20. Sabem como é que nós votamos. Agora, eles sabem que o governo Michel Temer não é assim. O Putin teve relação comigo e com o Lula. E pelo mundo inteiro é assim. O governo Temer apostou na Hillary. Por quê? É porque a relação com os democratas é via PSDB. Você vai reconstruir lá na frente. Vai ser o governo legítimo que terá legitimidade para reconstruir as relações.
Mas você não vê um cenário em que esse governo Temer se desmoralize, mas ao mesmo tempo essa violência contra a esquerda prossiga e você tenha um governo mais conservador que consiga vencer as próximas eleições? Num cenário desse tipo, o que acontece socialmente e economicamente com o país?
O Brasil não tem o nível de desenvolvimento suficiente para aguentar muitos anos de regressão. Não tem estoque de riqueza suficiente. Nós ficamos muito pouco tempo no governo para acumular estoque. Nós sabemos o que tem: 4 milhões e 100 mil famílias, eu garanto que têm uma casa. Garanto que uma porção de gente entrou na universidade. Outro estoque. Não é muito mais do que isso. Tem o povo que está ganhando o Bolsa Família, mas isso não faz verão! O que estou falando é o seguinte: os países desenvolvidos da União Europeia, que estão pegando uma rebarba horrorosa, têm estoque, nós não. E o estoque deles também está começando a esgotar. Pois de 2008 para cá, eles só perdem. E aquela coisa do jovem espanhol não ter emprego nem perspectiva, é uma coisa gravíssima. Mas eles tinham estoque. Então, a resistência é crescente. Tem o Podemos! Mas também a Le Pen. Tem o avanço de um setor do Partido Socialista na França, mas tem o avanço da direita na Áustria. Tem o Syriza se ferrando sozinho na vida. Tem o avanço da própria direita lá na Alemanha. Mas não temos uma situação de erupção social. Nós não podemos continuar só com a distribuição de renda. O problema é que daqui para a frente se vai exigir um nível de avanço do Estado que implique distribuição de riqueza. E quero ver fazer isto sem imposto. Quero ver!
“A JBS tem banco. Quem era o chefe do banco da JBS? Você sabe? O companheiro [Henrique] Meirelles! Todas as grandes empresas brasileiras têm uma variante bancária chamada tesouraria, na qual a parte financeira é, progressivamente, mais significativa que a parte produtiva”
Que postura o grande empresariado vai ter diante dessa necessidade que você anuncia? Ou seja, para que o país tenha futuro, precisa cobrar imposto, precisa ter a presença do Estado, precisa de bem-estar social. Vinculando essa pergunta àquele debate clássico: qual é a da burguesia brasileira? Dos capitalistas brasileiros?
Quando, no final de 2012, nós começamos a baixar os juros, nós o fizemos porque podia ser feito. Não tem por que esse país ter uma situação de juros tão diferente do resto do mundo. E nós estávamos baixando para os 2,5% de juro real. Juro alto se comparar com 0% ou 1%, no máximo, dos países desenvolvidos.
E era, supostamente, uma demanda dos próprios empresários?
Eu acho que era só do Zé Alencar. Quando iniciamos o processo de baixar os juros, nós abrimos uma discussão e não apareceu ninguém na discussão. Não apareceu apoio nenhum. Por quê? Porque os empresários brasileiros são maus? Não [ri]. Ainda hoje eles comemoram quando a variação do dólar significa aumentar o valor do real. Nós somos o único país que comemora isso. Qualquer país que se preze quer o seu dinheiro desvalorizado para competir internacionalmente. O único país em que o mercado canta em prosa e verso a valorização do real é o nosso. Outra coisa interessante: por que é que eles não queriam juro baixo? Porque também ocorreu o processo de financeirização aqui. A JBS tem banco. Quem era o chefe do banco da JBS? Você sabe? O companheiro [Henrique] Meirelles! Todas as grandes empresas brasileiras têm uma variante bancária chamada tesouraria, na qual a parte financeira é, progressivamente, mais significativa que a parte produtiva. A financeirização faz isso em qualquer país. Mas no Brasil, além disso, tem um ganho maior, que é um ganho derivado de serem sócios da rolagem da dívida pública. Quando o governo rola a dívida pública garante uma remuneração, chamada compromissado. O que é o compromissado? Você é um banco ou uma empresa, se você depositar no Banco Central, ele te paga a Selic, entendeu, companheiro? Você sentado lá na sua casa.
Remuneração garantida.
É. Isso é ser sócio da dívida pública. Se eu baixo isso, não são só o Itaú, Santander, nossa querida Caixa, nosso querido Banco do Brasil, que perdem. A Petrobrás também quer a mesma coisa, está endividada em dólar e quer o real ultravalorizado. Além disso, [o empresariado] tem uma boa lucratividade no mercado interno de rolagem da dívida. Primeira coisa, para eles investimento tem que ser através do endividamento. O investimento com endividamento necessita de um retorno menor que o investimento com capital próprio. O capital próprio tem que ser remunerado a mais do que o endividamento. Para você investir com capital próprio, você tem que exigir uma taxa maior de rentabilidade. Então, todo mundo quer se endividar. Além disso, tem a financeirização interna. Além disso, tem a aposta contra o dólar ou a favor do dólar.
O que você está dizendo é que esse pessoal não tem motivo econômico nenhum para apoiar um governo que combata a financeirização.
Não. Os Estados Unidos, também. A financeirização é implacável, ela muda completamente a lógica. Quem perde é a média indústria. A grande não perde e a pequena não muito, porque tem juros subsidiados.
Você acha que a gente tem capacidade política e social para juntar forças e fazer uma política de distribuição de riqueza, com tributação, política do Estado contra essa postura do grande empresariado?
Sim, caso os limites disso sejam muito claros para as pessoas. Em qualquer circunstância, você tem momentos de ascensão e de queda. A teoria das crises sempre foi olhada, tanto pela direita como pela esquerda, como uma oportunidade de transformação. Tem uma frase do Friedman que eu acho muito boa, esclarecedora. Ele diz o seguinte: “Somente uma crise, real ou pressentida, produz mudança verdadeira. Quando a crise acontece, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição. Esta, eu acredito, é a nossa função primordial”. Ele está falando disso em relação ao Pinochet. “Desenvolver alternativas em relação às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”. O que acontece no processo de impeachment, por exemplo, a sobreposição de duas crises — uma econômica e uma política — que permite que algo inimaginável como a “Ponte para o Futuro” se transforme na realidade e seja aplicado no Brasil. Da mesma forma, o que você estava me perguntando é em que condições é possível uma transformação. As condições que tornam possível uma transformação no Brasil são aquelas em que os conflitos que eles botaram em marcha, por exemplo a Reforma da Previdência e a flexibilização das leis trabalhistas, tenham expressão política e essa expressão política construa um caminho que não seja de direita. Porque você pode construir um caminho pela direita. O que estou dizendo é que a proposta do Friedman é pela direita — transformando o politicamente impossível no politicamente inevitável! Nós temos que construir o nosso politicamente inevitável dentro de uma visão de transformação da sociedade brasileira. Agora, as condições que levam a isso não são só subjetivas. Nós criamos as condições na América Latina, a partir da crise das ditaduras militares e, portanto, os processos democráticos sempre nos beneficiaram. A democracia nos beneficia e os processos de transformação são beneficiados pela democracia. Mas as condições também foram criadas pelas crises provocadas pela adoção de políticas neoliberais, que levaram à crise brasileira e à argentina, simultaneamente. E que levaram, em 2003, à proposta do Partido dos Trabalhadores. Nós vamos ter de refazer as nossas propostas.
“Eu não percebi qual era o nível de aversão deles [a burguesia] a pagar qualquer parte da crise. E nunca percebi que eles achavam correto arrebentar o Estado em relação a qualquer política de conteúdo nacional mínima. Achei que eles tinham interesse efetivo num projeto nacional de desenvolvimento, usar política de conteúdo nacional, recuperar a cadeia de petróleo e gás, criar a cadeia de fármacos — que se interessariam por isso”
Tudo o que você está falando agora, imagino que a ideia geral você já tinha. Todos nós já tínhamos a ideia de que a burguesia agiria assim…
Não toda…
Já tínhamos a ideia, ao menos genericamente, de que seria alto o nível de resistência.
Eu, por exemplo, nunca percebi a história, a não ser a posteriori, das classes mais enriquecidas do Brasil em relação aos juros. Eu não percebi, também, qual era o nível de aversão deles a pagar qualquer parte da crise. E nunca percebi que eles achavam correto arrebentar o Estado em relação a qualquer política de conteúdo nacional mínima. Achei que eles tinham interesse efetivo num projeto nacional de desenvolvimento, não no sentido nacionalista da palavra. Por exemplo, que usar política de conteúdo nacional, recuperar a cadeia de petróleo e gás, criar a cadeia de fármacos, colocar aqui uma parte da estrutura da indústria automobilística, através de toda aquela política que nós fizemos de garantir que as grandes empresas viessem para o Brasil — que se interessariam por isso. E o que eu vejo é que esse processo é tão duro que eles não se interessam, não. Não se interessam e a internacionalização ultrapassa as pessoas. A financeirização ultrapassa as pessoas. Você pode ter um grupo que o seu dirigente perceba que isso deva ser feito, mas o conjunto do grupo, não. Outra coisa interessante: a Lava-Jato, de uma certa forma, prendeu todos os empresários que estavam se transformando de empreiteiros em grandes empresas de engenharia. E que tinham um papel importante nesta etapa nova, porque empreiteiro no Brasil era aquele cara que só olhava obra pública e queria aquele rendimento, pagava sobrepreço etc. Se transformar em empresa de engenharia é outro papo, e diversificar suas funções, mais ainda. A própria Odebrecht era empresa de engenharia, que estava virando petroquímica e ia virar de óleo e gás. Quando o cara deixa de ser empreiteiro e passa para empresa de energia, ele tem de ter outra mentalidade.
Veja bem, não é trivial recompor o parque naval brasileiro. Não é trivial manter a indústria de equipamentos, bens e serviços da maior cadeia que tem no Brasil, a que tem maior impacto no PIB, que é a de petróleo e gás. Não é trivial olhar a cadeia de fármacos e tentar internalizar uma parte delaTudo isso foi feito. Até hoje tenho dúvidas. Se a crise de 2008 fosse lá por 2013, se nesse período esse pessoal não teria se fortalecido mais e aguentado esse processo de transformação, porque em termos de política industrial nós demos de 30 a 0 no Trump!
Mas, em tese, interessava a eles.
Interessava a eles, não tinha ainda a maturidade total, mas já dava para perceber que interessaria. Agora, eu só posso imaginar uma coisa: como é que eles defendem só corte de gastos? E zero de imposto? E defender só corte de gastos, transformar e criminalizar CPMF? CPMF elucida a sonegação, mas é zero vírgula. É uma miséria. O que ganha esse povo ao fazer uma licitação da Petrobrás? Todas as empresas de engenharia que compareceram são estrangeiras e todas têm processos de corrupção, ou administrativa ou legal. O que ganha essa burguesia do Brasil privilegiando esse pessoal? Me diz. Não ganham nada.
Dilma, é importante essa interpretação que você faz sobre a natureza da burguesia hoje porque tem uma implicação de estratégia política para as forças de esquerda no país.
Não acho que se tenha uma imutabilidade…
Trata-se disso, porque a geração de vocês fez esse debate sob a estratégia do Partido Comunista.
Eu sei. É o seguinte: não acredito que tenha uma situação fundamental, imóvel e parada no tempo em que os conflitos sejam cristalizados e unos. Depende da conjuntura política, da capacidade que você tem de romper. O mais complicado não é a mudança. O mais complicado é como é que você faz a transformação. Como é que você cria a correlação de forças para fazer a transformação. Não acredito que você consiga fazer isso através de métodos violentos. Uma das melhores coisas que li foi do Sergey Lavrov a respeito das consequências da violência sobre as formações sociais, quando ele alertava por que não se devia apostar na derrubada do Bashar al-Assad. Primeiro, porque eles [Estados Unidos] não conheciam a Síria e não entendiam o que os alauitas fariam naquela virada. Segundo, porque eles não imaginavam a consequências da violência sobre uma sociedade. E ele [Lavrov] fazia parte de talvez a mais recente e mais importante transformação violenta de uma sociedade: a da Rússia. Esse é um cara muito bom… Chanceler do Putin. Então, eu estou discutindo uma saída não violenta. Não acredito que os conflitos sejam congelados. A burguesia brasileira tem essa característica, mas dependendo da profundidade da crise, dos efeitos da crise sobre ela, é possível fazer com que facções dela se separem. Então, a estratégia política nunca pode ser feita igual a gente fazia no passado.
Eu passei a minha juventude toda discutindo se a revolução era socialista ou de libertação nacional. O povo libertador a gente olhava com muito desprezo. Porém o povo libertador era bastante radical, também, pois defendia a guerra popular prolongada. Eu era da revolução socialista. Mas o povo libertador era interessante, pois defendia a guerra popular prolongada, tomando do Mao a ideia da defensiva estratégica, equilíbrio de forças e ofensiva. Sempre, em qualquer das hipóteses, permanece o problema: como é que vira de uma etapa para outra e qual é a correlação de forças que explica que uma fase é de defensiva e como é que ela vira de equilíbrio e chega a ser de ofensiva. Sempre é o mesmo problema. O problema é o mesmo quando você for olhar a Revolução Russa e a tese do leninismo. Óbvio, lá tem o problema da consciência em si e para si, que é de um hegelianismo brutal, pelo menos é o que nós achávamos, do Luckács. Porque de repente a consciência vira para si e ninguém sabe o porquê. E tinha uma outra questão, também interessante, que era a teoria do foco.
Claro. Mas deixe-me colocar de outro jeito. Hoje você tem uma visão mais clara sobre os limites que a burguesia brasileira teve naquela etapa. A questão é que provavelmente, se se pudesse rebobinar a história, aquela política de subsídios e tudo o que foi adotado não seria adotada daquele jeito.
Ah! Não. Subsídio tributário não seria. Eu até escrevi isso. Por causa da apropriação via margem de lucro. O Guido [Mantega] é contra o que eu falo. Ele acha que tem justificativa. Eu entendo os argumentos dele e os argumentos do Arno, mas eu acho que não tem…
“Fomos ingênuos em relação aos meios de comunicação. Eles não têm nem princípios democráticos, nem republicanos. Com eles não dá para fazer ‘senta que o leão é manso’. O leão não é manso. Come sua mão, sua perna e sua alma”
Agora pegando o lado mais político, a relação do seu governo e também do governo Lula com os meios de comunicação, tendo em vista isso que você disse acerca da postura do grande empresariado: poderia ter sido diferente? Você acha que poderia ter sido diferente em relação à questão da comunicação de massa?
Eu acho que sim e mais do que isso… No início de tudo, estou me referindo a 2003, todos os grupos estavam em crise. Endividadérrimos até a alma. É muito difícil, no início, você ter uma visão que você tem hoje. Teria sido possível uma maior democratização dos meios de comunicação. Nós não podemos nunca deixar que se faça uma confusão entre duas coisas. Os meios de comunicação de massa enquanto negócio são iguais a qualquer negócio de qualquer empresa e, portanto, é inadmissível que eles sejam monopólios ou oligopólios. Isso é contra a democracia. Não é só contra a economia popular, mas é contra a democracia. Então, são esses os dois motivos e isso é eminentemente uma relação econômica. Primeiro de tudo, você não pode deixar que tenha junto jornal, televisão, rádio e revista e qualquer outro, tudo junto no mesmo conglomerado. E esta é uma questão de regulação econômica. Tem que impedir, como você impede no CADE. Mesmo no Brasil, você impede pouco. No mundo, se impedia mais. Hoje, também, está se impedindo pouco. Está lá o Trump querendo revogar algumas das regulações. Então, o que é que tinha que ser feito naquele tempo? Ao invés de você ajudar um grupo, o que tinha que fazer era viabilizar as formas mais democráticas possíveis. Mas a gente não sabia disso direito. Ninguém ali tinha essa proposta. Ninguém… Falar depois é fácil. Mas ali é que estavam as condições materiais para fazer. Por que tinha condições materiais para fazer? Porque tinha crise.
Segundo lugar, tinha que ter tido uma Lei de Meios. Eu não acredito na tese de que nós somos republicanos demais. É impossível não ser republicano, se não você passa a ter uma defesa meio malandrinha de algumas coisas. Mas ser republicano não significa não impedir que haja o controle econômico da mídia no Brasil. Porque o controle da mídia é econômico. O que a mídia faz? Ela exibe e arma contra nós a imprensa livre e democrática como fundamento da democracia. Perfeito. Agora, o fundamento da democracia não é igual a monopólio nem oligopólio. Nós defendemos a liberdade de imprensa. Não quero controle de conteúdo nenhum. Eu não quero o controle econômico do conteúdo. Nem o controle monopolista nem o oligopolista do conteúdo. Nós não soubemos colocar bem essa discussão. E fomos ingênuos em relação aos meios. Eles não têm nem princípios democráticos, nem republicanos. Com eles não dá para fazer “senta que o leão é manso”. O leão não é manso. Come sua mão, sua perna e sua alma.
No final do período Lula, não tinha mais força política suficiente para regular a mídia. Muito menos na presidência da Câmara o Eduardo Cunha. Como é que foi que o Eduardo Cunha se elegeu? Ah! Foi só com o Congresso? Não! O Eduardo Cunha foi lá na Globo e negociou com a Globo: “Ela [Dilma] está dizendo, na eleição, que vai fazer a regulação da mídia. Eu não vou! Ela não passa aqui!” Ele contava em prosa e verso. Eu não acho que ali a gente tivesse mais força para fazer. Talvez, no finalzinho do Lula. Talvez. Acho que o Franklin não conseguiria. Agora, não tenho dúvida de que esta é uma questão crucial no Brasil. Ou democratiza isso ou vai ser muito difícil. Porque duas forças aqui no Brasil, hoje, são contra a mudança e a favor de medidas regressivas. Duas grandes forças. Uma são os meios de comunicação. Os meios de comunicação são antidemocráticos!
E a outra?
A outra é que a gente tem que discutir mais uma questão política no Brasil, temos que discutir estruturação política propriamente dita. Tivemos um processo de redemocratização por cima, mas que teve um conteúdo forte por baixo, que foram todas as manifestações pelas Diretas. As manifestações pelas Diretas deram um substrato muito grande, mesmo com um acordo por cima. E isso foi uma mobilização da sociedade que se refletiu na Constituinte Cidadã. Essas mobilizações criaram um centro democrático. Tinha esquerda, tinha a direita e um centro democrático: Ulysses Guimarães e companhia limitada. Se você perguntar para mim qual é a expressão política de qualquer aliança de classe no Brasil, era esse centro democrático. Ele era estratégico para que se fizesse uma aliança estável. Era o MDB. Era mais que PMDB, porque nesse momento não tinha sido fragmentado. Tinha o PDT, o PT, o PSB, o PC do B. Do lado de lá, tinha o PP, o PFL, o “Centrão”, que era mais do que o PMDB de hoje.
O que acontece na metade do governo do Lula? O primeiro sintoma é quando nós perdemos a CPMF. Para quem nós perdemos a CPMF? Na perda da CPMF, tem algumas figuras estratégicas. Tem o Eduardo Cunha e o pato. O pato amarelo está lá. O pato amarelo estava sendo gestado. Neste momento, tem um processo de fragmentação que começa forte e tem impulso nos últimos tempos. Não tem cláusula de barreira, tem fundo partidário e venda de tempo de televisão. Tempo de televisão esse crucial, pois somente durante as campanhas eleitorais nacionais você tem uma ruptura do poder da mídia. Então, há essa fragmentação. Surge dentro do PMDB, pela primeira vez, uma versão de direita. O Eduardo Cunha não é um ser qualquer. O Eduardo Cunha é a hegemonia pela direita do PMDB. Ele pega o PMDB tradicional, que nunca teve um projeto de poder e tinha se tornado extremamente sensível às formas pelas quais podia ascender ao governo central: cargo e grana. Como eles ficam sensíveis a cargo e grana, surge um industrializador disso: Cunha. Não é que o Eduardo Cunha instaura isso no PMDB. Não. Ele pega uma tendência já existente e organiza. E torna-a estruturada. De duas formas: articulando o grupo da Câmara [dos Deputados] e criando com o grupo da Câmara toda cumplicidade que o dinheiro dá. É o chamado Clube de Paris. Quem conta bem é o Ciro Gomes. Conhece toda a história do Clube de Paris e me contou, porque lá em Paris é que eles se reuniam. E ele começa gestando, no início, só cercando eles. Ele não é deles, ele veio do [Anthony] Garotinho, mas ele entra. Tem um dia em que o Temer fala para o Lula, porque o Lula cobra distanciamento do Eduardo Cunha: “Mas eu não posso fazer nada. Eu chego em casa, ele está sentado no sofá”. É que ele era do Clube de Paris.
Ele era líder do PMDB?
Sim, ele era líder do PMDB. Aí, ele vira presidente da Câmara. Quando ele vira presidente da Câmara, fala na Fiesp e é aplaudido de pé. Procure essa fala dele. Vale a pena ver. Ele foi o grande articulador da direita. Era o único deles que tinha condições de articular. Ele é que articulou o Temer. “Gato Angorá” [Moreira Franco] e zero na quinta casa eram a mesma coisa. Eles tinham medo dele. E controlava 157 caras na Câmara. Ele financiou 157 parlamentares! O projeto do Eduardo Cunha não é só, ao contrário do que dizem, um projeto de comprar bolsa Louis Vuitton para a mulher dele.
Então hoje, no Brasil, você tem uma eleição majoritária federal um pouquinho melhor e uma eleição proporcional muito mais conservadora. Isso, nos últimos tempos, tem proporcionado uma piora nas eleições. Aquilo que o Ulysses falava: “Se você acha ruim esse legislativo, espere o próximo”.
Talvez você não lembre, mas em 2010 nós fizemos uma reunião, você ainda não era candidata oficialmente. Estava a direção nacional da Articulação de Esquerda e naquela ocasião fizemos uma pergunta sobre a questão agrária. Eu me lembro que você disse uma frase mais ou menos assim: “o custo de criar um emprego urbano é menor do que de um assentado”.
E é tão estarrecedoramente menor que você nem queira saber.
Então, o que ficou para nós naquele momento é que isso seria, pode ser que estejamos errados, o fato de a reforma agrária, no sentido clássico da palavra, ter tido menor peso no seu governo.
Não. A reforma agrária é uma proposta política. Não é uma proposta econômica. Porque se ela for econômica, só para você ter uma ideia, se você tiver um assentado hoje no Brasil o preço que a gente paga é proibitivo. Eu impedi três [desapropriações onerosas de terras]. Teve processos, eu controlei todos. Não só do meu governo. Controlei do Lula. Teve processos, querido, com preço lá em cima. Então, vamos lá devagar com o andor.
Quando você fala em preço, você está falando em desapropriação da terra?
Mas não tem outro jeito! No Brasil para ter outro jeito, muda a lei!
E se mudasse a lei da produtividade agrícola?
Sabe o que acontece comigo se eu mudar a lei da produtividade agrícola? Eu não tenho correlação de forças para sustentar. Eu faço a reforma agrária dentro dos termos. Nós defendemos que tinha um jeito de comprar terra para indígenas. Para acabar com o conflito que era o mais grave de todos. Por quê era o mais grave? Porque é briga dos pobres. É índios versus os caras que a Fetag representa.
Como é que desconcentra a propriedade da terra se tem esse limite? Ou não desconcentra?
Tem que fazer uma lei especial. Sem indenização.
Com limite de propriedade…
Limite de propriedade, grau de produtividade. Se não tiver isso, não tem jeito, você não faz com orçamento. A não ser que você faça reforma agrária só em terras desvalorizadas. Porque se você fizer em terras valorizadas, você não consegue segurar o preço. Bem, para fazer reforma agrária de terra, nós não tínhamos dinheiro. Então, fizemos uma parte só. Não fizemos tudo. E onde acho que deveríamos ter feito mais, não é na reforma agrária. É nos indígenas. A situação dos indígenas é muito ruim. Ali na Amazônia você têm populações indígenas em estado deplorável. Melhorou muito depois que a gente fez o Mais Médicos, pois hoje não tem um lugar que tem indígena que não tenha médico. Quer dizer, não sei se eles vão manter. Mas a parte mais importante era o Distrito de Saúde Indígena, DSI. E acredito que no Brasil terá de ter reforma agrária, mas a reforma agrária no Brasil não pode ser só distribuição de terra. O Incra como estrutura não tem a menor condição de fazer a reforma agrária. Sou total, frontal e completamente contra o Incra! E nunca deixei de falar isso. Nunca.
Outra questão: se alguém perguntasse para mim qual a coisa com que fiquei mais chocado, irritado no seu…
Joaquim Levy!
Não. Foi uma coisa assim: “Queremos ser um país de classe média”.
Isso é bobagem sua.
Então, a gente quer ouvir a sua opinião sobre isso. Por que não um país em que a classe trabalhadora tenha um alto nível de qualidade de vida? Por que não reivindicar a expressão classe trabalhadora?
Classe trabalhadora… Por quê? Classe trabalhadora no mundo não é classe trabalhadora no sentido tradicional. Hoje tem segmentos imensos que estão na área de serviços, que não se consideram classe trabalhadora. Não são iguais. Têm outro encaixe e se veem como classe média. Se veem como tal. Por quê, por uma questão semântica, não vou trabalhar a representação simbólica que eles fazem de si mesmos?
Mas isso não é um tiro no pé?
Não.
Chamá-los para se identificar como classe trabalhadora, lutar para que eles se identifiquem como classe trabalhadora não teria sido melhor?
Você não resolve o problema usando a semântica. O que eu queria trabalhar com esse povo é falar para eles, o seguinte: “O que você quer? Você quer uma casa, um carro e ensino público. Essa é sua pauta. Pois essa é a pauta que nós queremos para todo o Brasil. Nós queremos que o Brasil todo tenha carro, casa e estudo”. Eu não podia falar só para o pobre. Que é uma das coisas que nós mais erramos. Eu dizia isso para Sandra Brandão. Eu e Sandra Brandão escrevíamos os discursos para mim mesma e noutra época para o presidente Lula. Qual é o problema? O problema é que eu não convenço este pessoal, nem os trabalhadores só com a miséria.
Mas por quê?
Porque não convenço.
Por que o Trump, na reta final da eleição diz: “Trabalhadores, venham votar?” Por que nós aqui, com toda essa tradição varguista, “trabalhadores e trabalhadoras!”, por que nós…? Queria entender.
Por que não o outro?
“Não achamos que as pessoas são todas iguais. Todas têm de ter a mesma oportunidade, que é a discussão sobre a questão da igualdade numa sociedade capitalista. Não é intrínseco a elas. Um programa de habitação não podia ser um programa de 20 mil casas. Nós tínhamos de fazer de milhões de casas, porque todo mundo devia ter oportunidades iguais e a gente ser uma grande nação de classe média. Por quê? Porque a teoria da miséria não é atrativa”
Porque ele dialoga com outro conceito. Com o conceito da ascensão individual. O conceito da classe média.
Acontece que o que nós queremos é pegar o conceito da oportunidade. São dois conceitos diferentes. Tem muita inclusão, que a gente fazia, a inclusão de renda, e da oportunidade.
O da inclusão pega os pobres.
E o da oportunidade pega os pobres, também. O que é a oportunidade? Nós não achamos que as pessoas são todas iguais. Elas têm de ter oportunidades iguais. Todas têm de ter a mesma oportunidade, que é a discussão sobre a questão da igualdade numa sociedade capitalista. Não é intrínseco a elas. É a questão de oportunidade igual, que nós estávamos construindo as condições para oportunidade igual. Então, as pessoas teriam de ter acesso. Não podíamos fazer programa piloto. Um programa de habitação não podia ser um programa de 10 mil, 20 mil casas como eles fazem. Nós tínhamos de fazer de milhões de casas, porque se tratava de oportunidades iguais. Era essa a discussão. Todo mundo devia ter oportunidades iguais e transformar, a gente ser uma grande nação de classe média. Era essa a discussão. Por quê? Porque a gente achava que a teoria da miséria e da pobreza não é atrativa.
Mas por que você acha que falar de classe trabalhadora é igual a falar da teoria da miséria e da pobreza? Essa parte não consigo entender.
Nós achávamos que se falasse só de trabalhador, eles entendiam só um segmento. A gente queria botar junto também o pessoal… Porque fizemos o micro empreendedor individual, o MEI. O MEI não é um trabalhador no sentido… ele não se acha um trabalhador e a gente não queria chamá-lo de empresário. Então nós o chamávamos de classe média. A mulher, por exemplo, que na casa dela faz unha, bolo, a outra que costura, etc… Ela se acha empreendedora, não se acha classe trabalhadora, não.
Mas isso não é cria cuervos?
Por que cria cuervos? Você conhece um cara chamado Laclau?
Claro que conheço.
Meu querido, eu vou disputar, eu vou disputar…
Mas foram eles que nos disputaram!
E eles ganharam.
Isso.
O fato de eles ganharem não vai significar que não vou continuar disputando. O que o Laclau diz? Diz que tem o mesmo terreno, que você não tem terreno para disputar. O terreno em que você disputa soberania, a questão nacional, portanto, a questão democrática e a questão social é igual para todo mundo. Ou seja, para todas as classes. Você sempre disputa falar em nome de quem? Da soberania nacional. Eles vão falar que eles é que estão falando, nós vamos falar que somos nós. Eu vou falar que estou falando em nome de uma sociedade inclusiva, que cabe todo mundo, menos ricaço.
Mas por quê? Vou insistir pela última vez, só para você entender o nosso ponto.
Eu acho que o seu ponto é classista.
Exatamente. Por que você acha que a identidade…
Pois é. Eu estou defendendo o popular.
Isso. Por que você acha que identidade de classe…
Não podia falar que sejamos um país da classe trabalhadora.
Por quê? O Vargas podia falar, por quê?
Porque era uma sociedade mais simplória do que a minha. Porque lá na época do Vargas, ser trabalhador era gran cosa…
E hoje não é?
Infelizmente não é, porque segmentaram essa merda toda, entraram “serviços” na parada.
Mas como é que você chama de classe média o quem nem no meio está?
Sabe por quê? Porque eu consigo ampliar o conceito, mais do que conseguiria com… Podia chamar de povo, mas eles não se identificam com povo. E não estou falando só para o trabalhador do ABC, que é a aristocracia operária do país. Não estou. Era uma coisa que briguei muito. Ninguém pode falar só para um segmento. Não podemos falar só para os pobres que tiramos da miséria. Eu tenho que falar para o povo que vai ganhar uma casa, ele vai receber a casa, ele vai participar.
Do nosso ponto de vista, isso tudo poderia ter sido feito e atingido com…
Só com trabalhador? Quero ver.
Não é só com trabalhador. Tem um livro muito bonito que acompanha a evolução da luta de classes no mundo no século 20. Tem uma passagem em que ele fala assim: a grande vitória da Thatcher e do neoliberalismo, do discurso neoliberal como um todo, foi quebrar a identidade de classe. Na hora em que quebraram a ideia de que a classe trabalhadora pode pela ação coletiva mudar, aí obtiveram a vitória.
Mas eles quebraram acabando com os sindicatos.
Isso.
Pelo método tradicional.
Porque quando você chama alguém de classe média, você não convida o cara a ir para o sindicato. Quando você estimula a classe média, você não estimula a luta pelo bem coletivo. Carro, não transporte público. Saúde privada, não saúde pública. Educação privada, não educação pública. A crítica que a gente faz é essa.
Mas não precisa ser assim.
Eu recomendaria ver o que o Trump fez. Porque o que me impressionou na campanha dos Estados Unidos foi ele ter concluído sua campanha eleitoral chamando: “Trabalhadores dos Estados Unidos”…
Sabe por que? Porque ele tinha uma pesquisa que mostrava o seguinte: se você é trabalhador e branco, sem formação superior, você ganha hoje o mesmo que ganhava há 60 anos. É por isso.
Mas, veja, a direita ganhou nos Estados Unidos com um sentimento de classe.
Eu sei, mas não posso achar que aqui é igual. Tudo.
Claro. Não é esse o argumento. O importante é entender o raciocínio.
Estou te falando isso, porque tinha que ser uma coisa popular. É a disputa que o Laclau chama de popular, democrática e nacional.
Mas isso é gozado, porque o nacional-popular, no caso da Argentina, por exemplo, apela à classe trabalhadora e não a essa ideia da classe média.
O mercado de trabalho não é mais o mesmo. Nós pouco entendemos esse mercado de trabalho maluco que precariza o trabalho. Não precariza porque são maus. Vamos ter de entender o que é, por exemplo, que a tecnologia está fazendo com as relações de trabalho. O que a Apple está fazendo… mais uma vez, uma forma que o capitalismo sempre usou. Pega uma coisa que é das tendências de socialização e pega a seu favor. Exemplos: Netflix, Uber, Airbnb. A cooperação é uma forma avançada de trabalho, de organização do trabalho. A cooperação sempre será a forma mais avançada, enquanto eles não partem ela em pedacinhos. Toda a discussão do capítulo VI [de O Capital]. Eles pegam isso e transformam uma coisa que é cooperativa, em uma forma de expropriação brutal do trabalho. Porque as pessoas estão sendo expropriadas. Porque pega a propriedade delas. No caso do Uber é claro. O cara não conta nem a desvalorização do carro, tudo o que está perdendo. Ele acha que está ganhando. Então, trabalha só a fantasmagoria da mercadoria. Só isso. E trabalha de forma brilhante. E ferra quem? Ferra os pobres dos taxistas. Ferra quem? Os caras que estão trabalhando.
Mas como é que você lida com isso no terreno do simbólico?
Eu não acredito que você crie o que não existe.
Mas existe porque é a força de trabalho coletiva.
Mas aí vamos ver se existe.
Quando você abre mão de chamar de “A” e passa a chamar de “B”, está facilitando uma coisa ou outra.
Você acha que eu estaria facilitando.
É.
Vou considerar a tua posição. Agora, considere a minha.
Considero.
Há uma fragmentação absoluta do trabalho. Se a gente não entender o que a preponderância dos serviços faz nessa nova etapa do trabalho, não vai entender como é que o trabalho se organiza. É a preponderância dos serviços. Não é mais a preponderância da indústria.
Perfeito! Sabe o que é isto? É trabalho abstrato em larga escala. A classe trabalhadora só pode participar da riqueza que gera enquanto classe, coletivamente…
Não tem trabalho abstrato.
O que estou dizendo é que a classe trabalhadora só pode participar da riqueza que ela gera através de bens públicos, porque o grau de pulverização e fragmentação é tão grande que aquela coisa do antigo trabalhador que se sentia responsável individualmente pela produção…
O que a Thatcher destrói? A Thatcher destrói o que tinha condição de ser destruído. Os mineiros… Ela destrói aquilo que podia ser destruído. E o que eles fazem quando encontram alguma coisa que não pode ser destruída? Tentam absorver. O que é grave é em todas as circunstâncias eles tentarem acabar com os sindicatos. Com qualquer sindicato.
Onde você conhece alguém da baixa classe média que vai para o sindicato? Me diga isso.
Não sei por que não. E você acredita que vai organizar todo mundo em sindicato?
Não. Não acredito.
Ah, tá!
Mas estou trabalhando com teu raciocínio. Não acredito que seja possível. Mas acredito que uma grande parte dos trabalhadores que já não se identificam mais com a condições de trabalhador, hoje, podem ser reconquistados para essa ideia e podem ser organizados no âmbito da luta cultural, ideológica, por exemplo. Isso pode ser facilitado, entende?
Por que chamá-los de classe média impede?
Porque o senso predominante de classe média, aquilo que as pessoas entendem por classe média, é: “Subo na vida pelo meu esforço individual, não pelo esforço coletivo”. E como não é o esforço coletivo o principal, não preciso de sindicato. Entende o meu raciocínio?
Por que não acredito nisso? Porque eles podem entender que precisam de um conjunto de pessoas para subir. Porque se você tem o MEI, você tem o microempresário e ele pode ser uma força. Você sabe que eles se organizam? Eles se organizam. E eles não se chamam trabalhador. Eles vão se chamar microempreendedor. A pequena empresa não vai se chamar trabalhadora.
“A tal transição da ditadura para a democracia, teve, no final do [governo] Fernando Henrique, um acordão entre segmento das Forças Armadas e segmento do Governo, levando à anistia recíproca. Não existe um processo correto de transição. Ou seja: na hora em que o Supremo decide que a anistia é recíproca, ele acaba com a base da punição. Porque tinha que ter punição do torturador. É isso que estou discutindo. Alguém tem que ser punido!”
Na nossa nação haverá setores da classe média que não se organizam.
Mas isso não é classe média. É uma população pobre, que compõe o povo. Se você chamar classe média da parte intermediária, eu não acho isso. O que nós chamávamos de classe média… não era intermediária.
Penúltima questão. O tema da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que cruza com o tema da Segurança Pública e com a situação que está hoje, enfim.
Ela [CNV] foi no limite do que ela podia. Por quê? Porque tem um erro básico nessa história. A tal transição da ditadura para a democracia, teve, ali, no final do [governo] Fernando Henrique, um acordão entre segmento das Forças Armadas e segmento do Governo, levando à teoria da anistia recíproca. Quando fizeram a anistia recíproca, no final do governo Lula a gente tentou ser contra, apesar de ter uma briga feia. De um lado, eu e o Franklin [Martins], e do outro o [Nelson] Jobim. E eles ganham porque um deles que a gente achava que ia dar a nosso favor, deu contra [na votação do Supremo Tribunal Federal]. Quando acontece isso, não existe um processo correto de transição para a democracia, baseado nisso. Não tem. Ou seja: na hora em que o Supremo decide que a anistia é recíproca, ele acaba com a base da punição. Porque tinha que ter punição do torturador. É isso que estou discutindo, não estou querendo saber a verdade. Vamos ser concretos? Alguém tem que ser punido! Como aconteceu na Argentina, Uruguai e Chile. Aqui no Brasil, este é o momento mais difícil da questão da anistia. E aí vamos fazer a CNV. Neste quadro.
Primeiro, diziam que ela não ia sair. O que a gente fez? Estruturou uma comissão e botou todos os presidentes juntos. Deu uma brigalhada dentro da comissão porque o [Gilson] Dipp teve uma doença muito grave. Ele estava ligado ao primeiro procurador nosso [Cláudio Fonteles]. Eram ele e o Dipp as figuras centrais. Aí, ele entra, tem uma doença, vai para o hospital, foi substituído pelo Pedro Dallari, porque houve uma briga entre ele [Fonteles] e o Dipp e o resto da comissão. Depois, eles fizeram as pazes. Não sei em que nível fizeram as pazes. Mas Paulo Sérgio [Pinheiro] também foi importante. Apesar da origem tucana dele, foi muito importante. Bom, o que acontece? Acontece que o pessoal tem uma ideia de que a Aeronáutica, Exército e Marinha têm documentos. Não tem documento nenhum! Onde poderiam estar os documentos? Nós achávamos que os documentos podiam estar nas casas individuais das pessoas. Qual foi a nossa proposta? Fizemos um decreto que dizia o seguinte: se você for entregar o documento, você pode deixar onde você quiser, mandar avisar, nós vamos pegar e o seu nome fica em sigilo. Alguém apareceu, era relevante? Não. Não era. Agora, supor que dentro das instituições das Forças Armadas e Exército eles guardavam documentos é de uma ingenuidade imensa. Eles torraram isso, quando? Quando houve o acordo com o Leônidas. Sabe que houve acordo com o Leônidas no governo FHC? A partir daí os arquivos não param. Quem é que vai guardar arquivo dentro das Forças Armadas, nos quartéis? Só maluco para achar isso. Então, não tem como achar.
A nossa transição não pode ser desse jeito. Porque ou pune torturador, ou… A CNV é outra coisa, é para deixar registrado o que aconteceu. Conseguiram muita coisa. Uma parte dos arquivos nós conseguimos resgatar. Teve muita coisa que conseguimos resgatar, está digitalizado, tudo arquivado. Agora, não acho que os principais arquivos foram salvos. Por exemplo: os que não eram públicos, e não eram oficiais, eram todos os arquivos que os órgãos de informação faziam dos presos antes do julgamento. Eles não existiam antes e continuaram não existindo depois. Nunca. Eu sei disso porque tinha arquivos a meu respeito. Nunca esses arquivos foram reconhecidos. Nunca. Eu sei que havia. Eu li! Você não teve acesso a todos os arquivos de depoimentos, que tinha dentro da OBAN, dentro do CODI I, do CODI II, de todos os CODIs. Do que fizeram com a Guerrilha do Araguaia. No caso do enterro dos corpos, nós fizemos umas dez incursões, inclusive algumas que a gente achava que ia achar [restos mortais] na Serra das Andorinhas. Tudo o que foi possível fazer, foi feito. O que ainda não está completo é o Cemitério de Perus.
Mas 30 anos depois… Eu fui presa em 1970. A CNV foi 42 anos depois. Achar que tem arquivo 42 anos depois, me desculpem, é uma loucura. Eu entendo cabeça de pai, de filho, mãe de anistiado. Entendo perfeitamente. Agora, politicamente, não foi ali. Não é porque a CNV fez isso, que a Rosa [Cardoso] brigava com não sei quem, que o outro falava de não sei quem… Teve uma época que eu disse: “Não venham mais me dizer”. Não houve uma transição adequada no Brasil. Mas há que punir! Quem cometeu os crimes tem de ser punido. Ou é punido ou alguém vai lá no Congresso e vota como votou o Bolsonaro, homenageando o maior torturador de São Paulo.
Entendi. Queria vincular essa questão, que não é diretamente correlata, à das Forças Armadas. No finalzinho do processo de impeachment, em algum momento já em 2015, 2016, estava em curso o processo, a gente fazendo a mobilização de rua e estava em discussão a lei antiterrorismo. Como é que você avalia isso, à luz inclusive do que está ocorrendo agora, a crise da PM, essas questões da segurança pública, esse uso da lei em alguns casos.
A lei não pode ser usada nesses casos.
É isso que eu queria perguntar.
A lei não é para as situações internas do Brasil. A lei é para permitir que, caso haja aqui algum atentado, você tenha condições de reprimir. É outro papo. A lei não é para isso e não tem nada a ver com PM. Não tem nada a ver com a liberalidade da PM prender estudante. Então, eu acho que confundem a questão da lei antiterrorismo. A lei antiterrorismo cumpre um outro papel: é para prevenir a existência de ataques terroristas. Ataque terrorista não é igual a luta política. Não acho que a gente possa ser objeto de grandes ataques, porque o Brasil não é um país que defende invasão em nenhum lugar. Mas não podemos abrir mão da lei se você tem grandes eventos internacionais. Por quê? Porque você tem de levar em conta que outros países podem ser objeto de ataque no Brasil. E nós tínhamos que ter uma legislação que permitisse… com grandes eventos aqui, esta é uma possibilidade que existe.
Olhando retrospectivamente, você acha que foi correto fazer?
Eu não vejo como possa ser usado, ao contrário do que estão falando. Não acho que possa ser usado. E acho que, cada vez que falam que pode ser usado, justificam poder ser usado. Nós vetamos uma parte que dava esta possibilidade.
Agora, última questão: Forças Armadas e impeachment.
É muito grave. Eu não acho que as Forças Armadas do Brasil, hoje, tenham mancomunado com o golpe. Não acho que isso foi relevante. As Forças Armadas têm mantido uma posição democrática. Você não pode confundir com as pessoas que apoiam esse governo. O ministro que está aí está assumindo um cargo político. Agora, enquanto Forças Armadas, eu não vi nenhum ato de golpe militar no Brasil.
A presença do [general Sérgio] Etchegoyen…
Ele representa a si mesmo. Ele não representa as Forças Armadas no governo Temer. Até porque eu não acredito que as Forças Armadas seriam favoráveis a um governo cheio de corruptos. Não são. Elas olharão cum grano salis.
Pois bem, última questão. Mesmo entre os setores de dentro do PT ou de fora do PT que tinham críticas ao seu governo, houve um consenso em relação à sua postura, em especial naquela sessão do Senado que nunca terminava e em que você foi submetida a uma bateria. Então, está clara sua avaliação política sobre o episódio, está clara a visão que você tem sobre o país. Você como “pessoa física”, olhando para trás, como é que você encarou o episódio, a análise que faz como pessoa? Não como grande quadro político, de quem foi presidenta da República. Como é que você se viu nesse processo, o que você gostaria de compartilhar dessa experiência traumatizante que o país viveu?
Sabe, outro dia estava lendo um livro que fala sobre a esquerda e a derrota, referindo-se à queda do Muro de Berlim. Ele usa melancolia no sentido freudiano da palavra, naquele texto Luta e Melancolia. O que ele diz é o seguinte: que diante da derrota, as pessoas, a esquerda tem uma certa melancolia no sentido que o Freud usava, como processo com que a pessoa absorve a perda.
Faz o luto.
Não. Para ele o luto é outro. Ele tenta fazer uma reflexão sobre a derrota. Nós, no Brasil, sofremos com a derrota, com o meu impeachment. Foi uma derrota das forças progressistas. Agora, pode ser uma falha minha, mas não consigo ver como uma derrota. Pessoalmente, é uma das experiências mais amargas que eu passei na vida. E já perdi várias vezes. Aliás, a minha história é igualzinha à história da esquerda no Brasil. Nós perdemos várias vezes. É melancolia nesse sentido, tá? O que ele fala é que tem uma grande derrota da esquerda, e o que tem que fazer. Há um debate na França, hoje, sobre o que é ser de esquerda. Como é que você enfrenta a derrota, eles estão diante de uma derrota e avaliam isso. Mas eu quero dizer da minha. Perdi várias vezes, mas nunca consegui fazer a melancolia. Eu nunca tive a melancolia de esquerda. Eu perdi na queda do João Goulart, depois eu perdi na virada de 1964. Em 1968 que é o golpe no golpe, cadeia! Eu vi derrotar a eleição direta lá na emenda [“Emenda Dante de Oliveira”]. Mas também vivi algumas vitórias relevantes – e a mais importante começa em 2003 com a eleição do Lula.
Tenho a certeza de que nós não perdemos a democracia no Brasil. Que poderia ser a perda que me levaria a um luto. Nós não perdemos. O jogo vai ser jogado em 2018. Nós estamos no entreato. Houve este ato que acabou mal com o impeachment. Pode ser que o ato de 2018 acabe bem. O que eu tiver de força, neste ínterim, eu coloco nisso, porque do ponto de vista pessoal meu é como se fosse um resgate. No sentido assim: aconteceu isso de muito ruim, mas pelo menos foi contrabalançado por um avanço, que será, sem dúvida nenhuma, um novo governo progressista, que vai aprender com os nossos erros, que vai aprender com as nossas limitações. É o que espero. Uma visão otimista do processo. Eu não acredito que está tudo perdido. A democracia joga a nosso favor, não há condições objetivas de se destruir o processo democrático. Pode haver invasões de medidas de exceção sobre a democracia, pode haver e haverá. Nós aceitamos em todas as instâncias discutir o impeachment, porque eu podia dizer: “Não, esse impeachment está viciado, esse julgamento está viciado”. Se você fala isso, você não amplia esses espaços institucionais. Como acredito que a democracia joga a nosso favor, nós somos frutos do processo de redemocratização, principalmente de 2003. O que acontece com o impeachment? É a convicção de que democraticamente eles não têm vez. E isso eles sabem. Eles têm a convicção que nas regras democráticas eles não levam, se não, não teriam dado o golpe. Então, eu me dou o direito de achar que não está na hora da minha melancolia.
Página 13
12 de junho de 2017
Fonte: Esquerda Petista, n. 7, mai. 2017
http://www.pagina13.org.br/revista-esquerda-petista/entrevista-exclusiva-dilma-rousseff-sem-censura-ou-quase/#.WUYv_cZv_IU
Ótima entrevista da presidenta legitima.
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