Ao contrário de Janot e Fachin, 81% querem Joesley na cadeia


Difícil contestar a clareza da pesquisa do DataFolha sobre a delação premiada dos irmãos Batista.Nada menos que 81% dos entrevistados disseram que, eles deveriam ter sido presos -- em vez de tomar o jatinho para sua residência de luxo em Nova York, conforme assegurou o acordo de delação premiada assinado por Rodrigo Janot e homologado pelo ministro Edson Fachin, do STF.  Numa segunda questão, que ajuda a entender como a maioria dos brasileiros reflete sobre o sistema judicial no país, o DataFolha perguntou: "Na sua opinião, a Justiça no Brasil, na apuração de crimes, trata pobres e ricos da mesma maneira?" Uma maioria de 92%  disse que a Justiça "trata os ricos melhor do que os pobres".
Bingo.
São questões que têm relevância direta no momento atual. Num julgamento iniciado na semana passada, que deve encerrar-se nesta quarta-feira, o  STF debate a possibilidade de aceitar os acordos de delação como um pacote pronto. Produzidos através negociações do Ministério Público com delinquentes assumidos,  não poderiam ser discutidas em plenário depois de homologadas pelo ministro relator, Edson Fachin.
A ideia, que até agora vence por 7 votos a 0, é evitar que uma decisão de tamanha gravidade seja submetida a instância onde reside  força do Supremo, como poder da República  -- o colegiado de 11 membros, e não a sentença deste ou daquele ministro. 
É uma discussão de grande utilidade no momento atual, quando as concessões aos irmãos Batista, dispensados de cumprir uma única noite numa cela de prisão, provocam a indignação de 8 entre 10 brasileiros. 
Cinco anos depois, é possível lembrar  do julgamento da AP 470, em 2012. Na época, procuradores e juízes diziam na televisão que era preciso punir "os ricos e os poderosos", enquanto julgamentos diferenciados para os réus do PT e do PSDB asseguravam um tratamento escandalosamente desigual para uns e outros. No exemplo mais clamoroso, nenhum réu tucano cumpriu pena de prisão até agora.
Não é que os brasileiros desconheçam o volume da conta bancária de boa parte dos prisioneiros de Curitiba e não saibam que, entre os prisioneiros, é possível apontar figurões graúdos do nosso capitalismo. Claro que conhecem. A discussão é outra.
Num país onde violência policial  é uma ferida que atinge os de baixo -- de preferência negros -- com brutalidade animal, aprende-se o  valor essencial da liberdade e dos direitos, até pela pedagogia negativa, pela ausência.  
Submetidos a uma situação permanente de opressão em todos os  níveis da existência, uma grande maioria de brasileiros só conhece o Estado Democrático de Direito de ouvir falar e não tem a mesma experiência concreta de viver em liberdade do que eu e você. Mas todos sabem muito bem o que é ir para a cadeia e o que acontece com pessoas aprisionadas.
Por essa razão, não têm a menor dificuldade de imaginar  o que significa um  cidadão bilionário desembolsar uma alta soma em dinheiro, muitas vezes obtido com auxílio de atos considerados  criminosos  e, em troca, garantir que jamais ficará preso numa cela, nem será impedido de desfrutar as delícias da vida, como a  companhia família e dos amigos, o cinema nos fins de semana, viagens e assim por diante. Vamos reconhecer  que mesmo a mais civilizada cadeia do planeta é uma prisão -- e basta observar um animal enjaulado num Zoológico para ter noção do que isso significa.   
É desse universo que estamos falando. A liberdade como direito natural, devido a toda pessoa na hora do nascimento. Ou algo que pode ser negociado por algumas pessoas, que confessam seus crimes e delatam cúmplices. No caso dos irmãos Batista, foi possível evitar uma única noite passada na prisão. Dias atrás, em entrevista neste espaço, a procuradora Ela Wiecko, que disputa a sucessão de Rodrigo Janot como uma voz crítica, sugere uma reflexão a respeito das delações premiadas. Sem discordar de seu uso como instrumento de investigação, a procuradora lembra determinadas distorções. "As penas são simplesmente flexibilizadas pelo negociador, o que atinge a regra constitucional de que não há pena sem previsão da lei," diz.  Referindo-se a uma questão ainda mais séria, que envolve um aspecto essencial das delações, a procuradora acrescenta que " a colaboração premiada estabelece desigualdade entre autores de crimes análogos, pois a alguns é possibilitada, a outros não." Conforme Ela Wiecko, os critérios para fixação da pena-base " são adotados antes da prestação jurisdicional e sem atenção a limites mínimo e máximo de pena.  Nesse momento pode haver desigualdade entre casos semelhantes cujos procedimentos são atribuídos a membros do Ministério Público diferentes e Juízos diferentes. São reflexões sobre  um instituto novo que rompeu com o paradigma da obrigatoriedade da ação penal mas que não pode se desgarrar dos limites postos pela Constituição."
Em 2015, quando a Lava Jato se encontrava em sua fase inicial,  o professor Renato Mello Jorge da Silveira, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, apontou para um ponto que antecipa o debate colocado pelos  92% que, dois anos depois, reafirmam a velha noção da Justiça PPP (pobre, preto e puta) para dizer educadamente que ela "Justiça trata os ricos melhor do que os pobres."
Lembrando que as delações premiadas têm como prioridade obter depoimento de testemunhas em posição de mando, permitindo a quem dava ordens mais uma vez tirar vantagem de sua posição na hierarquia, o professor concluiu: "beneficia-se o criminoso de alta gama, aquele que teria mais informações. Pactua-se, portanto, com quem mais delinquiu. Pune-se a menor criminalidade ou outros, que simplesmente ficaram aquietados."
Sabemos que os tribunais não devem funcionar como um programa de auditório, onde as sentenças se decidem pelo palmômetro. A justiça pode, muitas vezes, exercer um papel contra majoritário, e defender direitos que a maioria não aceita em determinado momento.  
Mas é evidente que a visão de 93% da população  merece uma reflexão maior, pois fala de questões reais. 
Não custa refletir, também, sobre um fato histórico.
O esforço para retirar o Supremo de atribuições naturais à mais alta corte de Justiça tem um antecedente preocupante. Em outubro de 1965, quando assinou o AI-2, Castelo Branco tomou medidas típicas para consolidar a ditadura militar. Entre outras coisas, contrariando a vontade da maioria dos brasileiros, a partir do AI-2 eleição para presidente da República tornou-se indireta. O AI-2 também trouxe mudanças para o Supremo. Não só a composição do tribunal -- que passou de 11 para 16 membros -- mas também definiu sua pauta, ao excluir decisões que envolvessem "atos revolucionários praticados com base na nova ordem."  
Deu para entender, certo?  

Paulo Moreira Leite

BRASIL 247

https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/303028/Ao-contr%C3%A1rio-de-Janot-e-Fachin-81-querem-Joesley-na-cadeia.htm

Comentários